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Igreja dos Martírios (Recife, PE)

Foi instituída no ano de 1773 na Matriz de Nossa Senhora do Rosário da Vila do Recife.

Igreja dos Martírios (Recife, PE)

Artigo disponível em: ENG ESP

Última atualização: 04/05/2022

Por: Virgina Barbosa - Bibliotecária da Fundação Joaquim Nabuco - Especialista em Biblioteconomia e História

“[...] mais um monumento histórico, testemunha de um passado remoto, cederá lugar ao nosso progresso urbanístico [...]” (Jornal do Commercio, Recife, de 13 out. 1966 apud Loretto, 2008)

A Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, fundadora da Igreja dos Martírios, foi instituída no ano de 1773 na Matriz de Nossa Senhora do Rosário da Vila do Recife, e era formada por homens pretos e crioulos. Em 1775, transferiu-se  para a Igreja de Nossa Senhora do Paraíso onde foi colocada a imagem do Senhor dos Martírios. Por essa época, os compromissos da Irmandade já haviam sido  aprovados e, entre eles, uma procissão anual.

Foi preciso, então, construir uma capela para o “culto do seu Venerando Padroeiro, a sagrada imagem do Senhor Bom Jesus dos Martírios” num terreno doado, em 1782, pelo sargento-mor José Marques do Vale e sua esposa Senhora Ana Ferreira, situado no extremo da Vila de Santo Antônio. Concluída a capela, a irmandade e a imagem do divino padroeiro foram para lá transladados.

Em 20 de março de 1787, o provisor do bispado, Dr. João Soares Moriz concedeu licença para a construção da Igreja dos Martírios, no mesmo local da capela. Situada na rua Augusta (que corresponderia, hoje, aos módulos 3 e 4 do Camelódromo, na Av. Dantas Barreto) sua fachada era voltada para um beco que terminava na Igreja de Nossa Senhora do Terço. Até a sua conclusão se passaram cinco anos (1791-1796). Embora fosse um templo pequeno, se comparável a outras igrejas da cidade, possuía um valor imcomparável, principalmente pela fachada principal em estilo rococó (última fase do barroco), considerado uma das mais belas expressões arquitetônicas.

Com a construção da Igreja, a procissão se consolidou e, por aproximadamente cem anos, era a primeira a sair pelas ruas do Recife, marcando o início da quaresma.

O itinerário da procissão contemplava os bairros de São José e de Santo Antonio: partia da Igreja dos Martírios e percorria várias ruas em direção a Igreja de Nossa Senhora do Carmo; em seguida, até a Igreja de Santo Antonio e daí até a Praça Sergio Loreto, retornando pela Rua Augusta (extinta) até voltar a Igreja dos Martírios.

Segundo pesquisadores, além dos compromissos comuns às igrejas junto à comunidade, a Irmandade fundadora da Igreja dos Martírios mantinha atividades “secretas” em favor da abolição, entre elas a arrecadação de fundos por intermédio das Juntas de Alforrias que ajudavam os negros em sua luta pela libertação. Aliás, as Irmandades, inicialmente, eram lideradas pelos negros de Angola que, com o tempo, não permitiram o ingresso de outras nações, gerando dissidências. Conseqüentemente, surgiram outras irmandades como a de São Benedito, a de Santa Ifigênia, a de Santo Elesbão e a do Senhor Bom Jesus dos Martírios.

Apesar da importância histórica, arquitetônica e religiosa, a Igreja dos Martírios é, ironicamente e quase sempre lembrada por ter sido demolida para permitir a construção da Av. Dantas Barreto. Curiosamente, em períodos  ditatoriais e autoritários, monumentos do Recife foram extintos: a Igreja do Paraíso (1944), durante o Estado Novo, 1937-1945, nos governos de Novaes Filho (prefeito),Agamenon Magalhães (governador) e Getúlio Vargas (presidente); e a dos Martírios (1973), no Governo Militar (1964-1985), nas gestões do prefeito Augusto Lucena, do governador Eraldo Gueiros Leite e do presidente Gal. Emílio Garrastazu Médici.

Registra a história que a criação da Av. Dantas Barreto teve sua proposta original, de Ulhôa Cintra, aprovada em 1943 e que as discussões pró e contra a sua construção foram intensas. No final da década de 1940, anos seguintes e, principalmente, na década de 1960 e 1970, período das duas gestões do prefeito Augusto Lucena, o bairro de São José foi devastado transformando o espaço urbano do Recife em nome do progresso. Iniciadas por Novaes Filho, Pelópidas Silveira e Augusto Lucena deram continuidade às demolições que extinguiram vários edifícios no bairro de Santo Antonio. No de São José foram seis quadras, “mais de 400 casas, 11 ruas (Augusta, Santa Teresa, do Alecrim, das Hortas, Dias Cardoso, entre outras), o Pátio do Carmo e a Igreja do Senhor Bom Jesus dos Martírios”.

É importante registrar que na gestão de Pelópidas Silveira (fev. a ago. 1946) houve modificação do plano original da avenida: ao invés da Dantas Barreto mutilar o pátio da Igreja de São Pedro, tombada desde 1938, o prefeito alterou o projeto de Ulhôa Cintra e, com isso, comprometeu diretamente a permanência da Igreja dos Martírios, que não era tombada. Neste ano, já existia, no Recife, o 1º Distrito do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN, depois DPHAN e, hoje, IPHAN) dirigido pelo Sr. Ayrton de Almeida Carvalho que, já no primeiro mandato de Lucena (1964-1968), discordou de seu entusiasmo para construir “obras viárias à custa do patrimônio histórico”. Em 1946, mesmo com a ameaça da derrubada da Igreja, não houve defesa dos Martírios nem pela Irmandade nem por instituições.

Na década de 1950, questionada e criticada a viabilidade da construção da avenida quanto às práticas urbanísticas e de circulação viária, além dos gastos e utilidade, as obras pararam no Pátio da Igreja de Nossa Senhora do Carmo. A Igreja dos Martírios continuava de pé.

 Com o golpe militar (1964) Augusto Lucena volta à Prefeitura do Recife, dando continuidade à construção da avenida, concluindo o trecho entre o Edifício Igarassu, situado na Av. Nossa Senhora do Carmo, até a Rua Tobias Barreto. A partir de então, as discussões em torno da derrubada dos Martírios reiniciaram com mais força. A sociedade se dividiu: o DPHAN sugeriu e apresentou cinco traçados para defender e manter a Igreja pois já havia a preocupação e o questionamento sobre a preservação e restauração dos monumentos e sítios históricos. Ao DPHAN juntaram-se outras vozes que logo se transformaram em protestos, os quais, ao fim do primeiro mandato de Lucena desaceleraram as discussões.

Embora o substituto de Lucena, Geraldo Magalhães (1969-1970), tivesse pedido e aceito uma proposta alternativa para a construção da avenida e a permanência dos Martírios, o processo político-institucional que movia essa “batalha” não permitiu que em tão pouco tempo de gestão as coisas ficassem resolvidas.

 Com o retorno de Lucena à Prefeitura do Recife (1971-1975), a decisão de derrubar os Martírios foi concretizada. O ano de 1971 foi o auge dos conflitos. Várias instituições se envolveram: a Prefeitura do Recife, o 1º Distrito do IPHAN, além do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGPE), a Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios, os Conselhos Federal, Estadual e Municipal de Cultura, a Faculdade de Arquitetura da UFPE, a Academia Pernambucana de Letras, entre outras. O conflito atingiu proporções judiciais.

A Irmandade recorreu ao Conselho Estadual de Cultura, o IPHAN providenciou o tombamento (conseguido em 23 de junho de 1971) e a Prefeitura utilizou argumentos sobre a conservação da igreja, suspensão de algumas atividades eclesiais, a falta de uso, risco de desabamento pondo em perigo a vida humana, além de lançar mão do apoio legal que o poder municipal tinha de destruir edificações que ameaçassem a integridade da população. Com tais argumentos Lucena obteve apoio de historiadores, mais da metade da bancada de vereadores da Câmara Municipal, da maioria dos deputados estaduais, de alguns deputados federais, entidades de classe patronal e empresarial, dos membros do Conselho Municipal de Cultura e de algumas entidades civis e religiosas, inclusive da Arquidiocese.

Em oposição ao prefeito estavam jornalistas e escritores: Ariano Suassuna, Leonardo Dantas Silva, Paulo Malta, Orlando ParahymNilo Pereira, Marcos Vinícios Vilaça, os arquitetos Lúcio Costa e José Luiz Mota Menezes, a UFPE. Houve também inúmeras manifestações na mídia, além de correspondências enviadas à Prefeitura solicitando a permanência do templo.

Apesar de toda a movimentação em prol dos Martírios, Lucena conseguiu por influência política que o presidente Emílio Garrastazu Médici, em concordância com o parecer do Ministro de Educação Jarbas Passarinho, assinasse o Decreto 70.389 de 11 de abril de 1972, que autorizava o cancelamento do tombamento da Igreja dos Martírios. Com esse decreto estava selada a destruição dos Martírios. Lucena apressou a conclusão da avenida e, na manhã de 23 de janeiro de 1973, a Igreja dos Martírios foi derrubada. Em setembro do mesmo ano, a Avenida Dantas Barreto foi inaugurada.

Em nome do progresso muitas reformas urbanas foram realizadas no Recife. Com isso, a cidade perdeu três igrejas: a do Corpo Santo (1913), a Igreja de Nossa Senhora do Paraíso (1944) e a dos Martírios (1973). Atualmente, o que restou da Igreja dos Martírios está em exposição permanente no Museu da Cidade do Recife: as portas, o sino, a tela da nave central e outras peças.

 

 

 

Recife, 30 de abril de 2009.
 

Fontes consultadas

BARBOSA, Severino. Igreja dos Martírios: marco contra a escravidão. Diario de Pernambuco, Recife, 15 abr. 1990. Cidade. Caderno A, p. 20.

CAVALCANTI-BRENDLE, Maria Betânia Uchoa. Martírios do Recife. Continente Multicultural, Recife, ano 3, n. 31, p. 83, jul. 2003.

EDIFICAÇÃO foi o único templo no Brasil todo construído pelas mãos escravas. Jornal do Commercio, Recife, 15 out. 2000. Cidades, Urbanismo II.  Disponível em:
<http://www2.uol.com.br/JC/_2000/1510/cd1510h.htm>. Acesso em: 19 abr. 2009.

IGREJAS desaparecem para dar passagem a grandes avenidas. Jornal do Commercio, Recife, 15 out. 2000. Disponível em:
<http://www2.uol.com.br/JC/_2000/1510/indice.htm>. Acesso em: 19 abr. 2009.

LORETTO, Rosane Piccolo. Paraíso & Martírios: histórias de destruição de artefatos urbanos e arquitetônicos no Recife. 2008. 274 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Urbano) – Centro de Arte e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2008.

NASCIMENTO, Luis Manuel Domingues do. A construção da Av. Dantas Barreto e a lógica modernizante na cidade do Recife (1971-1973). Disponível em:
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PASSOS, Tânia. Progresso ou esquecimento? Disponível em:
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SOUZA LEÃO, Joça. Recife dos Martírios. Disponível em: <http://pe360graus.globo.com/noticias/cidades/opiniao/2008/02/18/
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SOUZA, Mariana. Dissertação aborda destruição das igrejas no Centro do Recife. Disponível em:
<http://www.ufpe.br/new/visualizar.php?id=8331>. Acesso em: 22 abr. 2009.

Como citar este texto

BARBOSA, Virgínia. Igreja dos Martírios (Recife, PE). In: PESQUISA Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2009. Disponível em: https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/igreja-dos-martirios/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)