Gripe Espanhola no Recife, A
Última atualização: 11/03/2022
Doença, enfermidade, mortes, muitas mortes. Insegurança, medo, incerteza, boatos. Críticas às medidas governamentais. Informações conflitantes e desencontradas sobre a cura da enfermidade, remédios caseiros milagrosos, tratamentos médicos controversos. Fechamento do comércio, dos divertimentos públicos e das atividades coletivas. Distância dos amigos e entes queridos, carência de afagos e abraços: isolamento social. A cidade e as pessoas mudaram seu cotidiano, ritmo de vida e costumes.
Estamos falando do Recife assolado pela Covid-19, pandemia que ocorre em 2020, atingindo praticamente todos os países? Sim e não. Esta descrição se refere, também, às vivências e sentimentos dos habitantes do Recife do início do século XX, quando doenças e epidemias se alastravam entre todas as camadas sociais e o pânico tomava conta da cidade.
O médico Octávio de Freitas, profissional que atuava no Recife, ressaltava, no início do século XX, a inquietante e ameaçadora situação vigente na capital:
Estudando-se a condição médica e as doenças reinantes em nossa capital, neste período de 1851 a 1900 verificar-se-á a existência, entre nós, de noventa e quatro surtos epidêmicos de considerável amplitude, alguns deles com espantoso número de óbitos, de quatorze doenças diferentes [...]. Devo assinalar que outras doenças nos têm visitado epidemicamente, no século atual, entre elas a Peste Negra do Oriente [...], a Disenteria que, em 1904, matou 2.886 pessoas e a Gripe Espanhola, com 1.893 vítimas em 1918 (FREITAS, 1904, p 50-52, grifo meu).
Covid-19 e Gripe Espanhola. Pouco mais de um século separam estas duas grandes pandemias. Muitas perguntas e comparações podem ser feitas, mas o fundamental é o aprendizado que podemos tirar, a partir do conhecimento e análise desses dois acontecimentos. Como os nossos antepassados enfrentavam as doenças e epidemias? Quais as medidas que os governos tomavam? Como os médicos atuavam? Quais os medicamentos utilizados? Como as pessoas se sentiram nesse momento de medo e angústia? O ontem e o hoje se aproximam e interagem, se distanciam e se desligam, em um movimento que orienta o ritmo e as transformações históricas.
Nas primeiras décadas do século XX, o Recife era um dos principais centros de comercialização do país. A importância do seu porto, sua posição de destaque nas áreas político-administrativa, financeira e cultural e o estabelecimento das primeiras atividades fabris tornavam a cidade um polo da economia regional e transformavam seu quadro demográfico. Este crescimento populacional gerava problemas de infraestrutura, carência de serviços públicos básicos, principalmente com relação à moradia, abastecimento d’água, saneamento e saúde. As epidemias e doenças se propagavam de tempos em tempos, faltava esgotamento sanitário e água encanada, o lixo se espalhava pelas ruas e becos e os animais vagavam soltos pelas vias. A visão da época era de que a cidade constituía um ambiente doente, insalubre e mórbido.
Nesse período, engenheiros, médicos, sanitaristas, higienistas e profissionais envolvidos com as questões urbanas consideravam a cidade, como um “espaço problema”. No Recife, planos e projetos foram implementados, transformando seu aspecto físico e impondo mudanças no modo de vida da sua população. Nos anos 1910, foram iniciadas a modernização do Porto e a reforma do Bairro do Recife e, na década seguinte, sobretudo no Governo Sérgio Loreto (1922-1926), outras reformas foram empreendidas. Contudo, como destacou o Dr. Octávio de Freitas, enquanto o Recife crescia, era modernizado e embelezado, também era uma das cidades mais insalubres do país.
É neste contexto, que, em fins de setembro de 1918, chega ao Recife a Gripe Espanhola, também conhecida como Influenza. O surto, que grassava nos Estados Unidos e sobretudo na Europa, entre as tropas que combatiam na Primeira Guerra, espalha-se e, em poucos meses, atinge a África, Ásia e a Oceania. As estimativas relativas à mortalidade provocada pela moléstia variam muito. Estudiosos falam que a epidemia deixou um saldo entre 20 e 50 milhões de mortos ao redor do mundo.
Informações dos jornais da época indicam que a enfermidade chegou ao Recife a bordo do vapor Piauhy, que aportou na cidade com dois doentes. Inicialmente, a doença contaminou os trabalhadores do Porto e, rapidamente, alastrou-se por toda a cidade. Enquanto alguns periódicos locais criticavam as medidas do Governo Manoel Borba (1915-1919), outros, como o Diario de Pernambuco, minimizavam a gravidade da situação.
Dr. Abelardo Baltar, então diretor de Higiene do Estado de Pernambuco, instituiu as primeiras medidas na tentativa de conter a doença: organizou e descentralizou o atendimento aos doentes, distribuiu medicamentos à população, recomendou o fechamento do comércio e de algumas instituições de prestação de serviços e diversões, no sentido de evitar aglomerações (A INFLUENZA, 1918, apud SILVA, 2017). Em meados de outubro, menos de um mês após a chegada da doença à cidade, o Dr. Baltar faleceu em decorrência da Influenza. Para substituí-lo na direção do órgão responsável pelo controle da epidemia, foi convidado o Dr. Octávio de Freitas.
Os jornais da época depositaram grande esperança no novo diretor, que dá prosseguimento a algumas medidas implementadas pelo Dr. Baltar, além de introduzir novas ações, na tentativa de debelar a epidemia. Conforme a enfermidade se alastrava e o número de mortos crescia, as ações da Diretoria de Higiene eram intensificadas e o medo da população crescia. O fluxo da cidade foi profundamente alterado. As pessoas procuravam não sair às ruas. Comércio, órgãos públicos, estabelecimentos educacionais, divertimentos... quase tudo fechou: igrejas, a Faculdade de Direito, escolas públicas e privadas, o Liceu de Artes e Ofícios, a Associação Cristã de Moços, vários cinemas, o Jockey Club e a Charanga do Recife foram algumas instituições que pararam suas atividades. A visita aos doentes nos hospitais, a presença nos cemitérios e o acompanhamento dos enterros também foram proibidos (A INFLUENZA, 1918 apud SILVA, 2017).
Diminuto movimento nas ruas, nos cinemas, cafés, finalmente em todos os estabelecimentos comerciais, muitos dos quais se fecharam por terem todos os empregados doentes. Nas estações Central, do Brum e das Cinco Pontas não se observa mais aquele movimento [...]. As ruas, da primeira casa até a última, estão cheias de doentes (A INFLUENZA, 1918 apud SILVA, 2017, p. 60).
A moléstia apresentava os seguintes sintomas: febre alta, prostração, falta de apetite, secreção pelo nariz, vômitos, palidez e dores no corpo (PINHO, p. 2, 2003). O medo do contágio transformou as relações sociais no Recife. Apertos de mão, abraços e a proximidade física eram desaconselhados, pois, significavam meios de contaminação. Boa alimentação, o uso de água fervida, a higiene pessoal frequente, a lavagem das mãos, a assepsia da boca e garganta eram recomendados, como medidas preventivas. Em meio ao desespero pelo agravamento do surto, um sem número de fórmulas caseiras, beberagens milagrosas, chás e porções misteriosas tinham suas receitas rapidamente popularizadas entre os habitantes do Recife. Os jornais publicavam receitas que seriam eficazes na prevenção e erradicação do mal:
Pela saúde do povo – para os que precisam estar em contato com os já enfermos, o remédio é o seguinte: CHÁ PREPARADO: Sabugueiro, 5 gramas, folhas de caroba, 5 gramas, casca de um limão pequeno (galego). Água bem quente, uma xícara das de chá, tomar de manhã, depois de morno, de uma só vez e igual porção à noite, ao deitar (A INFLUENZA, 1918 apud SILVA, 2017, p. 111).
A recomendação do consumo de frutas cítricas, sobretudo do limão, fez com que a fruta desaparecesse do mercado e o seu preço sofresse um grande acréscimo. As misturas de limão com diversas ervas, com xaropes e mesmo com bebidas alcoólicas, como conhaque, whisky ou aguardente, eram muito populares e consideradas não apenas preventivas, mas também curativas da doença.
Nos espaços públicos, medidas higiênicas e sanitárias foram tomadas pelo Dr. Freitas, na busca de expurgar a doença. O lixo era recolhido com mais frequência; os logradouros públicos eram desinfetados e lavados; piche e enxofre eram queimados nas ruas durante a noite. No relatório apresentado, em 1918, ao governador, Octavio de Freitas cita um total de 1.893 mortos, só no mês de outubro de 1918 (FREITAS, 1918 apud FARIAS, 2006). O memorialista Orlando Parahym relata: “Cerca de 120.000 pessoas adoeceram da Influenza numa população orçada em 220.000 habitantes” (PARAHYM, 1978, p. 201).
O mês de outubro transcorre na cidade em meio à tristeza, temor e incertezas. O grande número de mortos, a distância dos amigos e parentes, o pouco convívio social, a inexistência de um tratamento eficaz, tudo contribuía para um clima de desânimo e aflição entre os habitantes do Recife. Este panorama começa a se alterar, a partir de fins de outubro e início de novembro, momento em que os periódicos noticiam que a epidemia começava a dar sinais de declínio. O número de óbitos diminuía e, aos poucos, a cidade começava a ganhar vida e movimento novamente. Estabelecimentos comerciais vão reabrindo as portas, a população retorna às ruas, alguns cinemas, escolas e órgãos públicos voltam à atividade. Em dezembro de 1918, o Dr. Octavio de Freitas, considerado por muitos o responsável pela erradicação da Influenza no Recife, apresenta relatório ao Governo do Estado, classificando o surto como “a mais mortífera e a mais calamitosa de todas as epidemias aqui observadas” (FARIAS, 2006, p. 7).
Tempos de angústia, ansiedade, medo e sofrimento. 1918 e 2020... O ontem e o hoje se aproximam pela doença, pelo temor e pela insegurança. Como enfatizou o escritor Machado de Assis, “Tudo são mistérios indecifráveis [...]. Os fatos e os tempos ligam-se por fios invisíveis” (ASSIS, 1938).
Recife, 29 de junho de 2020.
Fontes consultadas
ASSIS, Machado de. Pobre Cardeal! In: ASSIS, Machado de. Relíquias da Casa Velha. Rio de Janeiro: Edições W. M. Jackson, 1938. Disponível em: https://machadodeassis.ufsc.br/obras/contos/avulsos/CONTO,%20Pobre%20cardeal,%201886.htm. Acesso em: 12 de maio 2020.
FARIAS, Eduardo Alexandre. Ilustre doutor: o discurso médico como notícia através da análise do relatório final da gripe espanhola no Recife. Comunicação e Saúde. São Paulo, v. 3, n. 5, dez. 2006. Disponível em: http://www.comunicasaude.com.br/revista/05/artigos/artigo_eduardo-farias.pdf. Acesso em: 10 maio 2020.
FREITAS, Octávio de. Os nossos médicos e a nossa medicina. Recife: Typ. D’A Província, 1904.
GOUVEIA, Bruno Márcio. Escritos e práticas na trajetória do médico Octávio de Freitas no Recife. 2017. 204 p. Dissertação (Mestrado em História) – PPGH, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/28093/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20Bruno%20M%C3%A1rcio%20Gouveia.pdf. Acesso em: 07 maio 2020.
PARAHYM, Orlando. Traços do Recife, ontem e hoje. Recife: Secretaria de Educação e Cultura. 1978.
PINHO, Carlos Eduardo Romeiro. 1918, a Gripe Espanhola aporta no Recife. In: ANPUH – SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 22, 2003, João Pessoa, 2003. Disponível em: https://anpuh.org.br/uploads/anais-simposios/pdf/2019-01/1548177544_4718cff82cceae1d9d8319b758654d7d.pdf. Acesso em: 11 maio 2020.
SILVA, Alexandre Caetano da. Recife, uma cidade doente: a gripe espanhola no espaço urbano recifense (1918). 2017. 155 p. Dissertação (Mestrado em História) - PPGH, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2017. Disponível em: https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/32740/1/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20Alexandre%20Caetano%20da%20Silva.pdf. Acesso em: 11 maio 2020.
Como citar este texto
COUCEIRO, Sylvia Costa . Gripe Espanhola no Recife, A. In: Pesquisa Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2020. Disponível em:https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/gripe-espanhola-no-recife/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)