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Espanhola ou a gripe que ninguém queria: o imaginário das pandemias no Ocidente

Diferentemente da Peste Negra, a Gripe Espanhola ocorre num cenário em que a explicação última para as catástrofes humanas já não se encontra nas mãos da Igreja. Este lugar agora pertence à ciência e, com isso, para além dos desígnios divinos torna-se necessário considerar também os imperativos da natureza e as ações humanas.

Espanhola ou a gripe que ninguém queria: o imaginário das pandemias no Ocidente

Última atualização: 12/11/2021

Por: Rosalira dos Santos Oliveira - Antropologa, Doutora em Ciência Sociais/Antropologia, Pesquisadora - Fundaj

No ano de 1918, alguns séculos após a eclosão da Peste Negra, outra doença assustou a população. Desta vez, não apenas a Europa e a Ásia, mas também o continente americano, e com ele, o Brasil, se viram ameaçados pela pandemia que se tornou a mais grave da história recente: a Influenza, que ficou mais conhecida como Gripe Espanhola1. Apesar do nome, e ainda que não haja um consenso universal sobre a origem do vírus, acredita-se que ele tenha se originado nos EUA2, de onde se espalhou globalmente durante os anos de 1918-1919. A estimativa é que cerca de 500 milhões de pessoas, ou um terço da população mundial, tenham sido infectados. O número estimado de mortes foi de, pelo menos, 50 milhões em todo o mundo.

 

O Brasil, inicialmente, acompanhou a doença a distância, através dos jornais. A população não demonstrava grande preocupação com a Espanhola, por considerar que o país não seria atingido devido à distância do continente europeu. O otimismo se revelou incorreto, já que a doença chegou ao país a bordo do navio inglês SS Demerara, cuja tripulação estava contaminada e que passou livremente pelos portos do Recife, Salvador e Rio de Janeiro, em setembro de 1918. Embora os portos tenham sido os principais focos de contaminação, a doença rapidamente se interiorizou, atingindo outras capitais e, também, as cidades menores. No final de outubro, a Espanhola já estava presente em quase todas as grandes cidades do país, incluindo o Rio de Janeiro e São Paulo. Sua expansão provocou um esvaziamento dos centros urbanos, uma vez que, desconhecendo outras medidas terapêuticas para evitar o contágio, as autoridades pediam à população que evitasse as aglomerações.

 

Ao longo do período da pandemia, registraram-se mais de 35 mil mortes em todo o Brasil. O Rio de Janeiro, maior núcleo urbano do país, apresentou o número de óbitos mais elevado. Em dois meses, faleceram 12.700 pessoas, cerca de 1/3 do total registrado no país, para uma população de quase um milhão de habitantes. A cidade estava parada: colégios, quartéis e fábricas interromperam suas atividades. Havia falta de alimentos, de remédios, de leitos e até de caixões.

 

Em São Paulo, com população estimada em 470 mil habitantes, foram registrados 5.328 óbitos causados pela Espanhola, entre os meses de outubro e dezembro. No Recife, cuja população chegava então a 218 mil habitantes, morreram 1.250 pessoas apenas no mês de outubro. Em Porto Alegre, onde se registraram 1.316 óbitos, para uma população de cerca de 140 mil habitantes, foi criado um cemitério especialmente para as vítimas da doença. Já Salvador apresentou o menor percentual de vítimas fatais entre as grandes cidades brasileiras. Numa população estimada de 320 mil pessoas, cerca de 130 mil contraíram a gripe e 386 morreram.

                                                                       

 1O nome Gripe Espanhola foi, como veremos mais adiante, parte do intuito de atribuir aos outros a culpa, de forma intencional ou não, pelo surgimento e disseminação da doença.

2Um acampamento militar no Kansas parece ter sido o local onde primeiro se diagnosticou a doença, que foi, então, levada à Europa pelos soldados que foram lutar na I Guerra Mundial.

 

 

          “La Española” e suas interpretações

 

Diferentemente da Peste Negra, a Gripe Espanhola ocorre num cenário em que a explicação última para as catástrofes humanas já não se encontra nas mãos da Igreja. Este lugar agora pertence à ciência e, com isso, para além dos desígnios divinos torna-se necessário considerar também os imperativos da natureza e as ações humanas. Em 1918, já se conheciam os micro-organismos patogênicos e se instaura, portanto, uma disputa entre as razões religiosa e científica, ambas buscando tornar inteligível um mundo em crise.

 

Deste modo, ao mesmo tempo em que os cientistas buscavam identificar e deter o agente causador da doença, as explicações metafísicas também encontravam seu espaço.  As percepções do final dos tempos e a atribuição da culpa ao complô dos inimigos de Deus e da ordem social continuavam atuando como interpretações poderosas, capazes de fornecer um sentido para o flagelo.

 

Vale salientar que o próprio clima da época era propício para disseminar o pânico em torno de uma peste que parecia ser o sinal do fim dos tempos. Em novembro do ano anterior, havia irrompido a Revolução Russa. Com este movimento, o sistema capitalista de produção e repartição de riquezas foi colocado em xeque como nunca antes. E, junto com ele, a religião.  Como diz o historiador Evan Mawdsley (1987 apud GRAY, 2020):

 

Se há um fato da história mundial recente ao qual o termo “apocalipse” se aplica é a Guerra Civil Russa. Não se trata de sugerir que os fatos de 1917-1920 foram o fim do mundo. Para os revolucionários, aquilo era o começo de uma nova ordem humana e, embora não tenham instaurado uma Nova Jerusalém, 70 anos depois podemos ver que, sim, criaram na Rússia algo extraordinário e duradouro. Mas a tomada do poder teve o preço de um enorme sofrimento e um número de mortes desconhecido, mas terrível – talvez entre sete e dez milhões no total. A guerra, a fome, a peste e a morte – os quatro cavaleiros do Apocalipse – devastaram o país maior da Europa... (MAWDSLEY, 1987 apud GRAY, 2020).

 

Ao mesmo tempo, a I Guerra Mundial prosseguia na Europa e os soldados brasileiros também foram chamados a combater. Toda esta ambiência abalava certezas e era, para os mais crentes, o anúncio da iminência do fim dos tempos. Os relatos sobre as visões de Nossa Senhora em Fátima, ocorridas entre maio e outubro de 1917, forneceram mais um elemento para compor este quadro de um mundo em colapso.3 A Gripe Espanhola veio coroar este cenário interpretado como prenúncio do Apocalipse, conforme comenta Gurgel (2013, p. 4):

 

Em pleno século XX, as incertezas, a falta de esclarecimentos factíveis e, finalmente, o medo da morte fizeram com que parte significativa da população se voltasse para a milenar explicação sobre a origem divina da Gripe Espanhola. Deus puniria um mundo em transformação, assolado por uma guerra, marcado pela cobiça e que parecia querer livrar-se dos bons costumes.

 

Com as escolas, igrejas e comércio fechados, uma sensação de sufocamento foi, aos poucos, tomando conta da população. Sensação agravada pelas cenas dos corpos estirados nas ruas, empilhados e em estados de putrefação que passaram a fazer parte do cotidiano das grandes cidades e acabaram por fazer aflorar na população um sentimento de fim do mundo. Como resposta, intensificaram-se as ações de rogo para o perdão dos pecados, tal como relata Gama (2013) em sua leitura do cotidiano da cidade de Manaus, durante a pandemia:

 

Essas representações sobre o dia do juízo final na cidade de Manaus se deram nos momentos mais difíceis da passagem da gripe espanhola, com exposição de cadáveres e com a ruptura das relações pessoais. Tudo indica que esse medo do fim do mundo não se deu somente por causa das desgraças que estavam acontecendo, como a crise econômica, a fome e a Hespanhola, mas também pelo papel que os meios de comunicação deram ao evento e como a população recebeu essas notícias [...] Juntamente com as procissões, os jornais de oposição, ante esse quadro de abandono do poder público, de pobreza e mortes, começaram a publicar, também, matérias sobre as profecias do livro bíblico do Apocalipse: com o fim do mundo cercado de fome, guerra e peste. Segundo essas matérias, a profecia estava literalmente sendo cumprida, esperando somente a vinda do Salvador, principalmente depois da hecatombe que houve no mundo, proporcionada pela guerra e pela gripe espanhola (GAMA, 2013, p. 148-149).

 

                                           

3Vale lembrar que Jacinta e Francisco, dois dos três pastores que relataram as visões de Nossa Senhora em Fátima, morreram da Espanhola, em 1920.

 

Mas, a segunda reação arquetípica – a busca pelos agentes do mal – também se fazia presente durante o período de ação da Espanhola. Na dramaturgia das epidemias, a culpa sempre vem do outro, do estrangeiro, nunca de nós mesmos ou da nossa sociedade. E, num mundo em guerra, o que não faltava eram inimigos a quem culpar pela doença. A própria denominação atribuída à Gripe já enfatizava essa vontade de culpar um outro pelo infortúnio. “Espanhola” foi a denominação que chegou ao Brasil. Mas na verdade, esta enfermidade acabou recebendo inúmeros nomes diferentes. Os países afetados atribuíam uns aos outros a culpabilidade pela doença. Na Rússia, a doença recebeu o nome de “Febre Siberiana”; na Sibéria, de “Febre Chinesa”; na França, “Catarro Espanhol” ou “Peste da Senhora Espanhola”; na Espanha, foi batizada com o nome de “Febre Russa” e por aí segue.

 

No caso do Brasil, um dos inimigos da época foi seguidamente acusado de ter provocado a epidemia. Assim, as pessoas atribuíam a doença ao veneno dispersado pelos alemães em seus submarinos, como uma estratégia para alterar o resultado da guerra. Esta teoria foi reproduzida, por exemplo, pela revista carioca A Careta, n. 537 (GOULART, 2005, p. 103):

 

A influenza espanhola e os perigos do contágio – esta moléstia é uma criação dos alemães que a espalham pelo mundo inteiro, por intermédio de seus submarinos, (...) nossos oficiais, marinheiros e médicos de nossa esquadra, que partiram há um mês, passam pelos hospitais do front, apanhando no meio do caminho e sendo vitimados pela traiçoeira criação bacteriológica dos alemães, porque em nossa opinião, a misteriosa moléstia foi fabricada na Alemanha, carregada de virulência pelos sabichões teutônicos, engarrafada e depois distribuída pelos submarinos que se encarregam de espalhar as garrafas perto das costas dos países aliados [...] (LA CARÈTE..., 1918, p. 31 apud GOULART, 2005, p. 103, grifo meu).

 

Ao lermos este trecho, chama atenção o fato de que, mesmo em uma época em que se conhece a ação dos agentes virais, surja um tipo de acusação que ecoa tão profundamente àquela dirigida aos judeus durante a Peste Negra, acusados de envenenarem as águas. Uma demonstração da força do imaginário que atua nas profundezas da mente humana.

E é observando a persistência dessas ideias arquetípicas que chegamos à grande pandemia que marca, para muitos historiadores, o final do século XX.

 

Leia mais:

 

O imaginário das pandemias no Ocidente Parte III – Covid-19 e o vírus que parou o mundo.  

 

 

 

 

Recife, 25 de fevereiro de 2021. 

 

Fontes consultadas

BARATA, Rita de Cássia Barradas. Epidemias. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, p. 9-15, jan./mar. 1987. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0102-311X1987000100002. Acesso em: 05 maio 2020.

 

DELUMEAU, J. História do Medo no Ocidente: 1300-1800: uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

 

DIAS, Thiago Fernando. A Religiosidade sustentada pelo medo: elementos de mudança no imaginário medieval a partir da peste do século XIV. Em tempos de História, Brasília-DF, n. 29, p. 39-57, ago./dez. 2016. Disponível em: https://doi.org/10.26512/emtempos.v0i29.14745. Acesso em: 10 maio 2020.

 

FOLLADOR, Kellen Jacobsen. A relação entre a peste negra e os judeus. Revista Vértices, São Paulo, n. 20, p. 25-46, 2016. Disponível em: http://revistas.fflch.usp.br/vertices/article/view/2903. Acesso em: 30 abr. 2020.

 

GAMA, Rosineide de Melo. Dias mefistofélicos: a gripe espanhola nos jornais de Manaus (1918-1919). 2013. 171 f. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus, 2013. Disponível em: https://tede.ufam.edu.br/handle/tede/3971. Acesso em: 20 maio 2020.

 

GENTILE, María Beatriz. La Peste y sus imaginários. Va con Firma, Neuquén, Argentina, 15 mar. 2020. Disponível em: https://vaconfirma.com.ar/?articulos/id_10843/la-peste-y-sus-imaginarios. Acesso em: 25 abr. 2020.

 

GOULART, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p.101-142, jan./abr. 2005. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702005000100006.

Acesso em: 14 maio 2020.

 

GRAY, John. Outro apocalipse: será impossível recuperar boa parte da vida que tínhamos antes da Covid-19 surgir? Seguinte, Gravataí-RS, 25 maio 2020. Disponível em: http://www.seguinte.inf.br/noticias/3--neuronio/7963_Outro-apocalipse:-sera-impossivel-recuperar-boa-parte-da-vida-que-tinhamos-antes-da-COVID-19-surgirY.  Acesso em: 25 maio 2020.

 

GURGEL, Cristina Brandt Friedrich Martin. 1918: a gripe espanhola desvendada? Revista da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, São Paulo, v. 11, n. 4, p. 380-385, out./dez. 2013. Disponível em: http://www.sbcm.org.br/ojs3/index.php/rsbcm/article/view/28. Acesso em: 28 abr. 2020.

 

PEREIRA, Nilton Mullet. A ideia de “fim do mundo”: paralelos entre os medos do mundo medieval e o medo do novo coronavírus. Café História, [s. l.], 4 maio 2020. Disponível em: https://www.cafehistoria.com.br/fim-do-mundo-dos-medos-medievais-ao-novo-coronavirus/. Acesso em: 09 maio 2020.

 

QUIRICO, Tamara. Peste Negra e escatologia: os efeitos da expectativa da morte sobre a religiosidade do século XIV. Mirabilia: Revista Eletrônica de História Antiga e Medieval, [s. l.], n. 14, p. 135-155, jan./jun. 2012. Disponível em https://dialnet.unirioja.es/ejemplar/327549. Acesso em: 10 maio 2020.

Como citar este texto

OLIVEIRA, Rosalira dos Santos. Espanhola ou gripe que ninguém queria, A: o imaginário das pandemias no Ocidente. In: Pesquisa Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2021. Disponível em:https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/espanhola-ou-gripe-que-ninguem-queria-o-imaginario-das-pandemias-no-ocidente/. Acesso em: dia mês ano. (Ex: 6 ago. 2020.)