A herança recolhida de Portugal e sobretudo dos mouros pela doçaria brasileira dos engenhos não foi uma herança pequena e sem importância. Os doces de freiras foram um dos maiores encantos da velha civilização portuguesa, que antes aprendera com os mouros a fabricar açúcar e a fazer mel, doce e bolo.
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O Nordeste do Brasil, pelo prestígio quatro vezes secular da sua sub-região açucareira não só no conjunto regional, como no país inteiro, se apresenta como a área brasileira por excelência do açúcar. Não só do açúcar: também a área por excelência do bolo aristocrático, do doce fino, da sobremesa fidalga tanto – contraditoriamente – quanto do doce e do bolo de rua, do doce e do bolo de tabuleiro, da rapadura de feira rústica que o pobre gosta de saborear com farinha, juntando a sobremesa a alimento e substância. [...]
Sem açúcar – seja do mais refinado ao mascavo, ao bruto ou de rapadura – não se compreende o homem do Nordeste.[...]
Gilberto Freyre, Açúcar (1987, p. 52; 17; 37).
O sabor doce, ao que tudo indica, tem origem no Oriente. Foi disseminado pelos mouros no mundo inteiro. Antes do açúcar processado a partir da cana-de-açúcar, os árabes deixaram em Portugal a herança do doce à base do mel de abelha, que pode ser considerado a mais antiga substância intrinsecamente doce conhecida.
Os africanos e os índios mastigavam os favos das colmeias com tudo: cera, abelhas e mel. Por não conhecerem o açúcar não faziam doces.
Foram os colonizadores portugueses que introduziram a doçaria no Brasil. A tradição doceira em Portugal já era abundante no século XV, ainda com a utilização do mel, que foi substituído lenta e gradualmente pelo açúcar.
Há registro de viajantes sobre a doçaria no Brasil desde 1597, a exemplo do depoimento de Gabriel Soares de Souza, no seu Tratado descritivo do Brasil, onde afirma que com açúcar fazem as mulheres mil manjares.
As tradições dos bolos e doces portugueses se enraizaram imediata e profundamente no país. Na culinária portuguesa, a doçaria inclui basicamente farinha de trigo, ovos, leite de vaca, manteiga e especiarias. Ao chegar ao Brasil, misturou-se e aculturou-se com ingredientes nativos, entre os quais o leite de coco e a farinha de mandioca.
No início do Brasil colônia, as frutas nativas frescas raramente eram servidas in natura. Por temerem problemas digestivos, os portugueses transformavam-nas em compotas ou as cristalizavam. Quando surgiu o gelo no Brasil, em 1834, e 1838, em Pernambuco, as frutas brasileiras além de doces, geleias, conservas e pudins eram transformadas também em sorvetes e gelados.
A primeira sobremesa brasileira aculturada foi o mel de engenho com farinha de mandioca, consumida – nos engenhos Salvador e Nossa Senhora da Ajuda, localizados em Olinda, Pernambuco – na época de Duarte Coelho e Jerônimo de Albuquerque (MOTA, 1968, p. 19).
Baba de moça era o doce favorito entre os fidalgos no Segundo Império. Já o pé de moleque – não muito apreciado pela elite da época – era popular entre as classes menos favorecidas. Criado no Brasil, sua receita era composta por ingredientes baratos e acessíveis aos escravos, como massa de mandioca, açúcar bruto ou rapadura, castanha ou amendoim.
A doçaria brasileira, especialmente a nordestina, deve muito às donas de casa, às negras de cozinha e aos pretos doceiros. Sua origem é patriarcal e seu preparo era levado muito a sério pela família nas casas-grandes e sobrados do Nordeste. As escravas que tinham fama de exímias doceiras eram “emprestadas” para festas em engenhos, vilas e fazendas.
A doçaria conventual, tradição também trazida de Portugal, atingiu sua época áurea em todo o Reino a partir de D. Pedro II. As freiras quituteiras eram consideradas mestras dos ofícios manuais, pela paciência e delicadeza na confecção dos doces. Ao chegar ao Brasil, os beijos, sequilhos e biscoitos confeccionados nos conventos sofreram modificações com a inclusão de ingredientes como o leite de coco e a goma de mandioca.
A cocada, vendida em feiras e tabuleiros de rua, é considerada um doce popular. Já o doce de coco é fino e aristocrático.
Segundo o jornal recifense A Marmota Pernambucana, publicado em 1850:
A cocada é o doce do povo, é o doce patriótico e democrático, e é a sobremesa dos pobres e, além disto, tem a particularidade de excitar o prazer de se beber um bom copo de água fresca [...] (CASCUDO, 2004, p. 614).
Além da cocada, são comuns no Nordeste, principalmente em cidades do interior, diversos tipos de doçaria popular, vendida em tabuleiros, feiras, pátios de igrejas, estações de trem: pão doce, bolo de bacia, bolo de goma, tareco, bolo cabano, bolo de milho, bolo de goma, pé de moleque, arroz doce (com leite de coco), alfenim, castanha de caju confeitada, “doce japonês” ou “quebra-queixo” – feito com açúcar, coco e outros ingredientes (goiaba, banana, castanha, amendoim), o que define o seu sabor.
Entre os doces, geleias e compotas de frutas, podem-se destacar a goiabada, goiaba em calda, geleia de araçá, doce de jaca, doce de caju em calda, doce de banana em rodelas em calda, doce de banana mexido, doce de coco verde, doce de coco maduro ou sabongo.
Como sobremesas tradicionais destacam-se a cartola, o bolo de mandioca, a tapioca molhada (com leite de coco), o pé de moleque, o arroz doce, o bolo de rolo, o bolo Souza Leão, o queijo de coalho com mel de engenho.
Há ainda uma série de sobremesas semidoces, algumas mais comuns na época junina, como a canjica (espécie de pudim de milho verde), a canjica de forno, o mungunzá (canjica, para os sulistas), a pamonha e o angu doce – feito de farinha de milho (fubá), uma espécie de polenta doce.
O bolo de noiva de origem portuguesa é feito de massa branca e recheios variados, e, dessa maneira, se espalhou por todo o Brasil. Em Pernambuco , no entanto, foi bastante modificado. É feito com massa escura, à base de ameixas, passas, frutas cristalizadas e vinho tinto doce (em vez de leite) e recoberto com glacê branco. Essa fórmula – uma herança britânica – faz com que dure muito tempo no refrigerador. Alguns casais guardam um pedaço para degustá-lo quando no aniversário de um ano de casamento.
Recife, 14 de maio de 2013.
Fontes consultadas
CASCUDO, Luis da Câmara. História da alimentação no Brasil. 3. ed. - São Paulo: Global, 2004.
CASCUDO, Luis da Câmara. Sociologia do açúcar: pesquisa e dedução. Rio de Janeiro: Instituto do Açúcar e do Álcool, Serviço de Documentação, 1971.
CULINÁRIA do açúcar. In: CULTURA do açúcar. Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 2010. p. 118-121.
FREYRE, Gilberto. Açúcar: em torno da etnografia da história e da sociologia do doce no Nordeste canavieiro do Brasil. 3. ed. rev. e aum. Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1987.
MOTA, Mauro. Culinária e doçaria. In: ______. Votos e ex-votos. Recife: UFPE, Imprensa Universitária, 1968.
QUINTAS, Fátima. A saga do açúcar. Recife: Fundação Gilberto Freyre, 2010.
Como citar este texto
GASPAR, Lúcia. Doçaria no Nordeste brasileiro. In: Pesquisa Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2013. Disponível em: https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/docaria-no-nordeste-brasileiro/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)