Cartola, nascido Angenor de Oliveira, foi cantor e compositor carioca responsável por grandes sucessos do samba. Sua vida nem sempre foi fácil. Terceiro filho de Sebastião Joaquim de Oliveira e de Aída Gomes de Oliveira, viveu até os onze anos uma vida confortável — entre os bairros do Catete, onde nasceu em 11 de outubro de 1908, e de Laranjeiras —, quando se mudou com a família para o Buraco Quente, no Morro da Mangueira, que começava a ser ocupado. Essa mudança marcaria para sempre sua história e a da música popular brasileira.
A ida para o morro se deu por questões econômicas. A dificuldade financeira da família o obrigou a trabalhar. O pai exigia-lhe todo o salário no final do mês e o atrito entre os dois eram constantes. Cartola mudava muito de emprego. Nos períodos de desemprego, frequentava as “bocas” da Mangueira, que eram casas onde deuses afro-brasileiros eram cultuados e onde se dançava e se jongava (SILVA; OLIVEIRA FILHO, 1983, p. 32).
Com a morte da mãe, aos dezessete anos, Cartola foi expulso de casa pelo pai e passou a viver perambulando pela Mangueira. Solto no mundo, mal cuidado, aos dezoito anos foi “adotado” por Deolinda, sete anos mais velha, que viria a ser sua esposa por duas décadas. Muito jovem, “casou” e “ganhou” uma família, pois Deolinda já tinha uma filha, Ruth.
Nessa época, Cartola era pedreiro, um dos melhores do morro. Inclusive o apelido, Cartola, foi dado pelos amigos da construção civil, aos quinze anos, pois, como era muito vaidoso, usava um chapéu, ao qual chamava de cartola, para não sujar a roupa de cimento.
Apesar de ser bom na profissão, Cartola preferia tocar violão, fazer samba e “tomar uma”. Junto com outros amigos, fundaram o Bloco dos Arengueiros, que desfilava nas imediações do Morro da Mangueira e arrumava confusão nos bairros vizinhos. Porém, além de gostarem de brigar, eram excelentes no samba. Assim, em 28 de abril de 1928, em reunião na casa de Seu Euclides, fundaram a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira. O nome e as cores foram escolhidos por Cartola. Estação Primeira da Mangueira porque era a primeira estação de trem, a partir da Central do Brasil, onde havia samba. As cores, as mesmas do Rancho que frequentava quando criança: verde e rosa.
Vale mencionar que o seu amor pelo Carnaval vem desde a infância, quando acompanhava os pais e o avô no Rancho dos Arrepiados — espécie de agremiação carnavalesca —, cujas cores eram verde e rosa. A música também fez parte de sua criação, pois seu pai, além de carpinteiro, tocava cavaquinho e violão nas festas e desfiles do Rancho. Cartola aprendeu a tocar cavaquinho ainda criança, pegando escondido o instrumento do pai.
Aos dezenove anos, era diretor de harmonia da escola de samba, que desfilaria pela primeira vez em 1929. As agremiações carnavalescas existentes no morro começaram a se juntar à Estação Primeira, com o intuito de mostrar à cidade o samba da Mangueira, criando um novo tipo de agremiação, cujo gênero musical era o samba. No fim dos anos 1920, a palavra samba foi ressignificada, passando a ser usada por descendentes de escravos, congregados nas escolas de samba. Samba para eles era ritmo, era coreografia, era gênero, muito parece com os pontos de invocação de orixás afro-brasileiros. Tanto que muitos dos primeiros sambistas também eram pais ou mães de santo. (SILVA; OLIVEIRA FILHO, 1983, p. 45).
Na década de 1930, Cartola já era referência nos escritos sobre música brasileira. Em 1933, pela primeira vez, uma composição sua, Que Infeliz Sorte, foi gravada por Francisco Alves. Entretanto, a fama não lhe dava retorno financeiro e ele precisava trabalhar, já que a família crescia com agregados e filhos adotivos. O que ganhava com o samba apenas dava para manter sua vaidade, pois gostava de andar arrumado. Trabalhou como pedreiro, peixeiro, vendedor de queijos. Sua mulher, Deolinda, eventualmente trabalhava como cozinheira.
Cartola produzia cada vez mais, sozinho ou com seu parceiro Carlos Cachaça, orador da Estação Primeira de Mangueira. Para aprimorar suas letras, passou a ler poemas de Castro Alves, Gonçalves Dias, Olavo Bilac. Em meados da década de 1930, as escolas de samba passaram a integrar o carnaval oficial do Rio de Janeiro. A essa altura, Cartola já tinha outras composições gravadas e era reconhecido como compositor. Em 1937, ganhou um concurso da prefeitura, cujo prêmio, uma medalha de ouro, precisou ser empenhado para o sustento da família.
Esse período da vida de Cartola foi contraditório:
A década de 1930 foi, como vimos, o ‘Tempo de Cartola’. A juventude despreocupada do compositor/cantor que jamais correu atrás da fama, sendo, contudo, procurado por ela. Tanto compôs, mas só o morro lhe ouvia a voz. Que conheceu o gosto de ser aclamado, ficando, todavia, com os bolsos vazios. Que ganhou uma medalha de ouro das mãos da classe dominante e transformou-a em feijão e cachaça. Que era amigo de Villa-Lobos, mas morava num barraco de madeira. Um homem respeitado e desligado. Pobre. Dono somente de um enorme talento. (SILVA; OLIVEIRA FILHO, 1983, p. 66).
Nos anos seguintes, década de 1940, Cartola foi propagando seu samba. Participou, juntamente com Paulo da Portela, de um programa na Rádio Cruzeiro, chamado A Voz do Morro. Desfilou em carro alegórico, após ter sido escolhido cidadão-samba. Formou, com Paulo da Portela e Heitor dos Prazeres, o Conjunto Carioca, divulgando o samba carioca em São Paulo.
Aos trinta e oito anos, foi acometido por uma meningite que o fragilizou por cerca de um ano. Recuperou-se com remédios e com os cuidados de Deolinda. Infelizmente, após sua melhora, Deolinda faleceu devido a problemas cardíacos. Um de seus grandes sucessos, cantados também por outros artistas, Sim, foi escrito após a morte da companheira.
Sim,
Deve haver o perdão
Para mim
Senão nem sei qual será
O meu fim
Para ter uma companheira
Até promessas fiz
Consegui um grande amor
Mas eu não fui feliz
E com raiva para os céus
Os braços levantei
Blasfemei
Hoje todos são contra mim
Todos erram neste mundo
Não há exceção
Quando voltam a realidade
Conseguem perdão
Porque é que eu Senhor
Que errei pela vez primeira
Passo tantos dissabores
E luto contra a humanidade inteira
Como os desfiles das escolas de sambas estavam se tornando cada vez mais comerciais, em 1948, Cartola desfilou puxando um samba de sua autoria, na Estação Primeira de Mangueira, pela última vez. Por um tempo, parou de tocar e compor e foi morar com sua nova mulher, Donária, na favela da Manilha, em Nilópolis. Para sobreviver, trabalhou como biscateiro. O curso da vida o tinha deixado maltratado, sem dentes e magro. Seu nariz começava a apresentar sinais da doença que o fez passar por uma cirurgia plástica anos depois.
Em 1952, conheceu Zica, por quem se apaixonou e com quem passou o resto da vida. Ela o impulsionou a voltar ao meio musical e a arrumar um trabalho. Quando trabalhava como lavador de carros em Ipanema, foi redescoberto por Sérgio Porto, que o trouxe de volta ao mundo da música. Porém o samba não estava na moda. Os amigos foram conseguindo empregos para ele, que trabalhou como contínuo e também em diversos ministérios.
A mudança para Rua dos Andradas, 81, Centro, no segundo andar, em cima da Associação das Escolas de Samba, foi marcante para a vida de Cartola e Zica. Lá, Zica vendia comida e ele era o zelador. Às sextas-feiras, a casa ficava repleta de amigos para beber e tocar samba. O desdobramento desses encontros foi a inauguração do Zicartola (1963-1965), um restaurante que se tornou uma casa de samba frequentada por importantes personagens da música carioca.
Depois de passar pelos bairros de Santo Cristo e Bento Ribeiro, com ajuda e articulação de amigos, Cartola e Zica conseguiram um terreno na Rua Visconde de Niterói, na Mangueira, onde o próprio Cartola construiu sua casa. O terreno foi doado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro a Cartola pela sua contribuição à música e à cultura brasileiras.
Mesmo sendo reconhecido como um mito vivo da música brasileira, tido suas composições gravadas por intérpretes famosos, apenas em 1974, com mais de sessenta anos, Cartola gravou seu primeiro LP individual, com o qual recebeu vários prêmios e passou a fazer shows em todo o país. O segundo disco veio em 1976 e com ele o grande sucesso da música As rosas não falam:
Bate outra vez
Com esperanças o meu coração
Pois já vai terminando o verão enfim
Queixo-me às rosas, mas que bobagem
As rosas não falam
Simplesmente as rosas exalam
O perfume que roubam de ti, ai...
Devias vir
Para ver os meus olhos tristonhos
E, quem sabe, sonhar os meus sonhos
por fim
Depois de quase trinta anos sem participar dos desfiles da escola de samba que fundou, o agora poeta das rosas desfilou na comissão de frente da Mangueira em 1977. Neste mesmo ano, gravou o terceiro disco. O reconhecimento havia chegado. Era sucesso de crítica. Mas a Mangueira não era mais a mesma. Ele precisava de mais tranquilidade para compor.
No ano em que completou setenta anos, comprou uma casa com o dinheiro ganho com a música e mudou-se para Jacarepaguá — apesar de anos antes ter dito que nunca sairia do morro. Mudou-se fisicamente, seu espírito continuou na Mangueira. Neste mesmo ano, teve seu primeiro show individual: Acontece. Seu septuagésimo aniversário foi celebrado com serenata, missas e homenagens.
O quarto e último LP veio em 1979, quando sua prosperidade econômica aumentava e sua saúde piorava. Diferente do tempo de mocidade, Cartola estava sempre preocupado com o futuro de Zica e dos seus. Um câncer descoberto dois anos antes, já operado, mas não tratado, reincidiu. Precisou de nova operação. Fez o tratamento indicado pelos médicos, mas sofreu com os efeitos colaterais. Mesmo adoentado, gravou pela última vez com Alcione, em 1980. Cartola morreu em 30 de novembro de 1980, aos setenta e dois anos.
Sua poesia e seu samba não acabaram com sua morte. Suas composições continuaram e continuam a ser cantadas e regravadas. Em 2001, foi criado, na Mangueira, o Centro Cultural Cartola que preserva sua memória e seu legado e que o tem como um exemplo a ser seguido devido “sua história de luta, de superação de dificuldades e de inserção ativa do indivíduo na sociedade através da produção cultural”. (CENTRO CULTURAL CARTOLA).
Durante sua vida, Cartola saiu poucas vezes da Mangueira, sempre retornando. O poeta das rosas foi parte da Mangueira e a Mangueira foi parte dele. Cartola fez sua história no samba e, ao mesmo tempo, fez a história do samba. Sua vida foi contada no documentário Cartola – Música para os olhos, de 2007, dirigido por Lírio Ferreira e Hilton Lacerda.
Fontes consultadas
CARTOLA. In: Enciclopédia Itaú Cultural. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa11957/cartola>. Acesso em: 26 mar. 2014.
CENTRO CULTURAL CARTOLA. Apresentação. Disponível em: <http://www.cartola.org.br/>. Acesso em: 26 mar. 2014.
SILVA, Marília T. Barboza da; OLIVEIRA FILHO, Arthur L. de. Cartola: os tempos idos. Rio de Janeiro: FUNARTE/INM/DMP, 1983.
Como citar este texto
MORIM, Júlia. Cartola. In: Pesquisa Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2014. Disponível em: https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/cartola-cantor-e-compositor/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)