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Serração da Velha

A serração da velha representava uma espécie de pausa no rigor do jejum e da penitência quaresmal.

Serração da Velha

Artigo disponível em: ENG ESP

Última atualização: 30/03/2022

Por: Semira Adler Vainsencher - Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco - Mestre em Psicologia

O Carnaval e os primeiros folguedos carnavalescos foram introduzidos pelos colonizadores portugueses, nos séculos XV e XVI. Dentre os folguedos mais populares, encontrava-se a serração da velha. Em Portugal, ele era encenado na noite da quarta-feira que precedia o terceiro domingo da Quaresma. A serração da velha representava uma espécie de pausa no rigor do jejum e da penitência quaresmal. Neste sentido, os jovens realizavam desfiles nas ruas usando máscaras e fantasias, coletavam dinheiro e doces, declamavam poesias, cantavam e dançavam. Tudo isso, ao som do triquelitraque - um instrumento constituído por uma tábua e várias fileiras de martelinhos que nela batiam, produzindo um barulho sui generis - e de latas arrastadas.

A leitura do testamento da velha era uma prática corrente, levando-se ao conhecimento público os beneficiários na partilha dos bens. Em seguida, um jovem - sempre alguém do sexo masculino - erguia o instrumento de suplício (no caso, o serrote), sobre um pedaço de madeira, de tábua ou um espantalho de pano e, mediante o vai-e-vem do braço, fazia de conta que serrava a velha, enquanto os demais participantes cantavam:

 

Estamos no meio da Quaresma,
sem provarmos o café,
Vamos serrar esta velha,
para o altar de S. José.

Estamos no meio da Quaresma,
sem vermos nado [sic] do teu amor,
Vamos serrar esta velha,
para o altar de Nosso Senhor.

Ferre-se a velha,
Força no serrote,
Serre-se a velha,
Dentro do pipote.

Esta velha tem malícia,
Esta velha vai morrer,
Venha ver serrar a velha,
Minha gente, venha ver.
Serra, serra, serra a velha
Puxa a serra, serrador,
Que esta velha deu na neta,
Por lhe ouvir falar de amor.


As pessoas que assistiam ao folguedo repetiam: serra a velha, serra a velha, serra a velha! Ou: "serre-se a velha em postas de cinco centímetros".

Ao que o serrador continuava perguntando:
Que castigo merece a velha, dizei-me, senhores?

E o público, como em um julgamento coletivo, respondia:
Serre-se a velha! Força no serrote! Serre-se a velha! Força no serrote!

Às vezes, a folia terminava em tragédia, quando os jovens decidiam “serrar” determinada senhora da localidade, e seus familiares reagiam jogando água quente no grupo. Em Portugal, durante a encenação, era costume se oferecer aos participantes um prato de doces. Então, os jovens agradeciam com aplausos e gritos de alegria, e se dirigiam para outras ruas, repetindo a brincadeira.

A serração da velha representava uma válvula de escape da juventude, frente a determinados pontos que visavam: 1) relaxar o controle dos cardápios dos dias santos, que exigiam os tradicionais jejuns e penitências (o folguedo rompia com a austeridade da Semana Santa, e com o código de restrição alimentar e o jejum conventual, peculiar à Quaresma, em memória ao sofrimento de Jesus Cristo; 2) reivindicar maior liberdade nos namoros - as moças eram muito reprimidas, sendo subjugadas por mães, avós, tias e madrinhas, tidas como guardiãs da honra e dos bons costumes; 3) incentivar o surgimento de um modelo feminino mais libertário, que possuísse mais direitos; e 4) aliviar as tensões sociais existentes entre as gerações.

Não se pode afirmar, com precisão, quando e como essas folias começaram a ser encenadas no Brasil, mas, embora com pouca freqüência, elas foram registradas em crônicas do começo do século XVIII.

Câmara Cascudo (1979) ressaltou a serração da velha no Nordeste, no final do século XIX, afirmando que o folguedo fazia parte do calendário religioso da Quaresma - embora haja indicações de sua ocorrência fora desse período – e que era utilizado, inclusive, com intenções políticas, em demonstrações de desagrado, na residência de algum governante decaído ou candidato derrotado em eleições. De acordo com o folclorista, um grupo de foliões serrava uma tábua, aos gritos estridentes e prantos intermináveis, fingindo serrar  uma velha que, representada ou não por algum dos vadios da banda, lamentava-se através de um berreiro ensurdecedor. Câmara Cascudo localizou, também, expressões de desagrado em relação à folia, provenientes de pessoas que se sentiam ameaçadas por ela, e assinalou que, em fins do século XIX, o Código de Posturas de Papari, (hoje, Nísia Floresta, no Rio Grande do Norte) já proibira sua representação naquela localidade.

Durante os séculos XVIII e XIX, o folguedo era encenado no litoral sul do Rio de Janeiro, e em algumas cidades do interior nordestino. No presente, porém, restam pouquíssimas lembranças dessa folia em pequenos municípios da Região Nordeste. Quando muito, apenas meros resquícios da serração da velha: uns detalhes tão pequenos que o próprio passar do tempo tem se encarregado de eliminar por completo.

 

 

Recife, 21 de janeiro de 2008. 

 

Fontes consultadas

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Melhoramentos; [Brasília]: Instituto Nacional do Livro, 1979.

CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1954.

CARNAVAL. Disponível em: http://www.pime.org.br/missaojovem/mjhistbrasilcarnaval.htm. Acesso em: 20 ago. 2007.

COSTA, Suely Gomes. A serração das velhas. Disponível em: http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys1_2/sueli1.html. Acesso em: 20 ago. 2007.

 

FREGUESIA de parada. Disponível em: http://www.bragancanet.pt/braganca/parada.html. Acesso em: 18 jun. 2007.

 

NICOLAU, Mário. Justiça popular na calada da noite. Disponível em: http://www.asbeiras.pt/?area=coimbra&numero=13953&ed=19032004. Acesso em: 20 ago. 2007.

PORTUGAL: Alto Minho – Distrito de Viana do Castelo – Concelho de Viana do Castelo – Freguesia de AFIFE. Disponível em: http://www.freguesiasdeportugal.com/distritoviana/09/afife/historia.htm. Acesso em 20 ago. 2007.

A QUARESMA e a Semana Santa. Disponível em: http://www.inepac.rj.gov.br/modules.php?name=Content&pa=showpage&pid=57. Acesso em 4 set. 2007.

RITUAIS de vida e morte. Disponível em: http://www.cm-montemorvelho.pt/aconteceu_2007/112022007.htm. Acesso em: 20 ago. 2007.

SERRAÇÃO da velha. Disponível em: http://r-t-c.planetaclix.pt/outros_festejos.htm. Acesso em: 18 jun. 2007.

SERRAÇÃO da velha. In: Wikipédia, a enciclopédia livre. [São Francisco: Wikimedia Foundation], [2007?]. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Serra%C3%A7%C3%A3o_da_Velha. Acesso em: 18 jun. 2007.

SERRAÇÃO da velha. Disponível em: http://www.jangadabrasil.com.br/marco/fe70300c.htm. Acesso em: 18 jun. 2007.

VAZ, Anabela. Serração da velha juntou mais de uma centena de pessoas. Disponível em: http://figueira.com/noticias/asbeiras/2001/Marco/ffab010326-1.html. Acesso em: 20 ago. 2007.

 

Como citar este texto

VAINSENCHER, Semira Adler. Serração da Velha. In: PESQUISA Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2008. Disponível em: https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/serracao-da-velha/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)