[...] Quatro espadas no reisado todo mundo foi
Tem um corso entre cores e sombrinhas
Lá vem as pastorinhas o canto é geral [...].
(Pelas ruas do Recife, Marcos e Paulo Sérgio Vale, Novelli)
O corso, uma das brincadeiras de rua mais tradicionais do carnaval do Recife, consistia em um desfile de veículos ornamentados pelas ruas centrais da cidade, com foliões geralmente fantasiados, que jogavam confetes, serpentinas nos ocupantes dos outros veículos.
Quando ainda não existia o automóvel, o desfile era composto por carros puxados a cavalo: cabriolés, aranhas (carruagens leves de duas rodas), charretes, entre outros.
No início do século XX, os foliões usavam, além do confete e serpentina, água com limão e bisnagas com água perfumada. Tocavam e cantavam marchas carnavalescas, tornando a brincadeira bastante alegre e musical. Havia também algumas fanfarras que desfilavam em carros alegóricos.
Há registro da existência de corso na cidade de Olinda, Pernambuco, já em 1901.
Existiam concursos para o carro mais bem ornamentado, como o noticiado pela revista recifense A Pilhéria, dos dias 14 e 28 de fevereiro de 1925:
Procurando concorrer também para o brilho do carnaval deste anno a importante firma desta praça Alberto Amaral & Cia. offerecerá por intermedio desta revista ao automovel que equipado de pneumaticos GOODYEAR mais bem ornamentado se apresentar no corso, uma linda taça que será exposta numa das vitrinas de uma das nossas joalherias. [...]
[...] Coube a victoria, por unanimidade, ao carro do illustrado clinico Dr. Gustavo Pinto – Embarcação a vella – trabalho de fino gosto artistico. [...]. Ainda concorreram ao premio TAÇA GOODYEAR os carros: Pierrot Phantasmas, Flor do Arrayal, Pierrot Verde, Monjopina, Arco Iris e Bloco Vesper da Bôa Vista.[...]
Mario Sette, em artigo intitulado Entrudo e frevo, publicado no Anuário do Carnaval Pernambucano de 1938, descreve assim o corso no carnaval do Recife:
[...] o Côrso, outrora formado de alguns carros de passeio, puxados a cavalo, transformou-se no cortejo de dois ou três mil automóveis da atualidade. Desapareceram, porém, os cavalerianos que antigamente faziam correrias pelas ruas da cidade, exibindo o garbo e os animais. O brinquedo, por seu turno, requintou-se. Das gamélas e barris do começo do século XIX, filtrado pelas modificações de lima de cheiro, da bisnaga, do papel picado, do getoni [tipo de bombom], alcançou a delicadeza do lança-perfume e da serpentina. [...]
Há também diversos registros na imprensa recifense sobre a realização de corso na chamada Micareme ou o segundo Carnaval (fora de época). O Jornal do Commercio do dia 3 de abril de 1923 informou:
Foi surpreendente a animação do Carnaval ontem de 18 horas em diante.O corso se intensificou mais, notando-se lindos caminhões e automóveis garridamente ornamentados, enquanto o brinquedo do lança-perfume, serpentinas, getoni e confeti nada deixava a desejar como a eloqüente demonstração de alegria com o que povo aceitou e aplaudiu a idéia do segundo Carnaval.
Nas décadas de 1960 e 1970, um dos veículos mais utilizados no corso era o jeep, sem capota. Havia também muitas camionetes e caminhões, por serem veículos abertos, essenciais para a brincadeira. Diversos foliões preparavam carros só para o desfile do corso. Serravam a lataria de fuscas, por exemplo, para que ficassem conversíveis e os decoravam com pinturas carnavalescas e frases engraçadas.
Eram bastante comuns, nessa época, grupos de jovens desfilando em jeeps sem capota, ornamentados e abastecidos com confete, serpentina, maisena, talco e tonéis cheios de água, onde as bisnagas eram abastecidas para molhar uns aos outros.
Além das bisnagas de plástico, havia ainda um artefato artesanal, muito popular, construído com cano de PVC e cabo de vassoura, uma espécie de “bisnaga-gigante”, que era enchida com água e, por pressão, fazia com que jatos fortes molhassem os escolhidos para a brincadeira. Funcionava como uma mangueira portátil para dar banho nas pessoas.
Além da água, as pessoas eram “presenteadas” também com “nuvens” de maisena, talco ou farinha de trigo, quer estivessem nos veículos em movimento (marcha lenta) ou nos “points” onde paravam para apreciar o desfile, comer, beber e paquerar. Na década de 1970, era bastante consumida nesses “points” uma “batida” chamada Fast-Back, vendida em recipientes de plástico.
Era o conhecido “mela-mela”. Várias moças, para proteger os cabelos da “sujeira”, os enrolavam em toalhas, uma vez que iriam aos bailes carnavalescos à noite, realizados pelos clubes da cidade. Era muito comum vê-las com turbantes bem presos à cabeça, para evitar que fossem retirados e os cabelos “emporcalhados”.
Usava-se também muito batom e esguicho de lança-perfume, cujas marcas mais conhecidas eram a Rodo, fabricada em vidro ou metal e que, em 1938, lançou uma versão metálica dourada que passou a ser conhecida como Rodouro; a Pierrot e a Colombina. Na década de 1930, existia também a Roial e aParis, fabricadas em Pernambuco pela Indústria e Comércio Miranda Souza S. A.
Como o seu uso ainda não havia sido proibido, o lança-perfume era muito popular entre os foliões. No final da década de 1930 existiam diversos versinhos para divulgar a marca Rodo:
Rei Momo agora merece
Nosso apoio oficial...
Mas a alegria quem tece
É o bom RODO de metal!
Menina de saia rosa,
Curta, leve, transparente,
Onde vai assim dengosa,
Botando Rodo na gente?!
Um perfume suave eu espalho,
Sou distinto, perfeito, não falho.
Sou metal e no chão não estouro
Sou o lança-perfume RODOURO.
Atenção, caros ouvintes,
Ao meu verbo oracular:
Seja de vidro ou metal:
RODO não tem similar.
No século XIX, há registro de um corso organizado por grupos da alta sociedade recifense, que percorriam ruas dos bairros centrais da cidade em carros decorados, segundo informação publicada pelo Diario de Pernambuco, do dia 13 de fevereiro de 1885:
Clube do Dominó Preto – alguns moradores da nossa sociedade organizaram um clube denominado de Dominó Preto, que sairá a carro, ornado ad hoc, afim de percorrer diversas ruas das freguesias de Santo Antônio, São José e Boa Vista nos 1º e 3º dias de carnaval, representando uma alusão perfeitamente preparada. O clube percorrerá as seguintes ruas: Imperador, 1º de Março, Duque de Caxias, Marcílio Dias, Pátio do Terço, Coronel Suassuna, Pátio de São Pedro, Camboa do Carmo, Barão da Vitória, Aurora, Formosa, Hospício, Conceição, Rosário, Barão de São Borja, Cotovelo, Largo da Santa Cruz, Visconde de Pelotas e Imperador.
Muitas dessas ruas mudaram de nome, como a Formosa, atual Conde da Boa Vista e a Barão da Vitória, hoje a conhecida e tradicional Rua Nova. É provável que este percurso tenha inspirado o itinerário do corso recifense no século XIX. Realizado normalmente pelas ruas dos bairros centrais do Recife, o trajeto do corso, no entanto, sofreu diversas mudanças, mas era definido com antecedência pela Prefeitura e divulgado pela imprensa.
No carnaval de 1923, o jornal Diario de Pernambuco, do dia 4 de fevereiro de 1923, divulgou a nota abaixo, sobre o itinerário a ser seguido pelo corso, que abrangia ruas dos bairros de Santo Antônio e da Boa Vista:
Carnaval: o prefeito do Recife determina à Inspetoria de Veículos o seguinte itinerário: Praça do Comércio (estátua Barão do Rio Branco), Marquês de Olinda, Ponte Maurício de Nassau, 1º de Março, Praça da Independência, Sigismundo Gonçalves, Barão da Vitória, Ponte da Boa Vista, Floriano Peixoto, Visconde de Camaragibe, Riachoelo [sic], Praça Maciel Pinheiro, Floriano Peixoto, etc.etc. até a Praça do Comércio. O corso é duplo em toda a sua extensão.
Nas décadas de 1960 e 1970, o trajeto era feito utilizando-se a Avenida Conde da Boa Vista,Ponte Duarte Coelho, Rua do Sol, Rua da Concórdia, Rua Nova, Ponte da Boa Vista, Rua da Imperatriz, Ponte Velha, Rua da Aurora, Rua do Hospício, Avenida Manoel Borba. Havia muitos locais onde os grupos se reuniam.
O corso era realizado à noite, na semana pré-carnavalesca e, de dia, durante o período do carnaval.
No início da década de 1970, começaram a utilizar na brincadeira água contaminada, graxa e outros produtos nocivos à saúde, além de ser comum a prática de comportamentos de violência física, inclusive na forma de assédio sexual, ocasionando o fim do corso.
Atualmente, existe no Recife o Corso de Carros Antigos, já no seu 10º desfile (2008). É um evento que funciona como o abre-alas para divulgação do Bal Masqué, o tradicional Baile de Máscaras realizado pelo Clube Internacional do Recife há 58 anos.
Diversos automóveis antigos, fabricados nas primeiras décadas do século XX, partem da sede do Clube no Benfica, bairro da Madalena, e vão desfilando pela cidade até o bairro do Recife, onde normalmente, com o término do evento, acontece uma batalha de confetes, serpentinas e bombons, relembrando o lirismo dos antigos carnavais recifenses.
Recife, 26 de fevereiro de 2008.
Fontes consultadas
ANUÁRIO DO CARNAVAL PERNAMBUCANO, Recife, 1938.
AULER,Alexandro. Este será o 10º Corso de Carros Antigos. Disponível em:http://jc.uol.com.br/blogs/blogcarnaval2008/canais/noticias/
2008/01/11/corso_desfila_hoje_pelas_ruas_do_recife_123.php. Acesso em: 8 fev. 2008.
BEZERRA, Amílcar Almeida; SILVA, Lucas Victor. Evoluções: história de bloco e de saudade. Recife: Bagaço, 2006. p. 21.
CORSO. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Carnaval_de_Recife#Corso>. Acesso em: 9 fev. 2008.
RABELLO, Evandro. Memórias da folia: o carnaval do Recife pelos olhos da imprensa (1822-1925). Recife: Funcultura, 2004.
SILVA, Leonardo Dantas. Carnaval do Recife. Recife: Prefeitura. Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2000.
Como citar este texto
GASPAR, Lúcia. O corso no carnaval do Recife. In: Pesquisa Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2008. Disponível em: https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/o-corso-no-carnaval-do-recife/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)