Das modalidades poéticas, talvez seja a arte do repente a que desperta maior curiosidade. Qual criatura em momento de infinda paixão não sentiu a necessidade de exprimir seu amor através de versos? Muitos conseguiram, com maior ou menor maestria, no entanto, poucos se atreveram a criar no instante impreciso, no arranco do grito, versos Decassílabos, Sextilhas ou qualquer outro gênero dessa complexa arte, para brindar sua inspiradora musa. Se nos causa espanto o talento com que esgrimam seus versos os engenhosos menestréis, imagine-se então a surpresa ao constatarmos a presença de mulheres em território tão marcadamente machista. Poucas são as mulheres que enveredam por esse universo e, em verdade, não podemos nos admirar da quase ausência de uma poesia feminina “dada à situação de enclausuramento vivido pela mulher durante anos. Apesar de tudo e todos, tentaram superar os obstáculos e desafiaram a ordem patriarcal que as restringia à esfera domestica” publicando textos às vezes anonimamente ou sob pseudônimos masculinos. Violeiras, emboladoras, aboiadoras, cordelistas desafiaram este espaço tradicionalmente masculino e transfiguraram motes com suas métricas perfeitas que nada deixam a desejar a muito velho cantador. Essa expressiva presença, algumas vezes mimetizada, não buscava ocupar o espaço do outro, porém e principalmente, ocupar o seu próprio espaço antes vazio.
A literatura popular tem sido estudada sobre variados aspectos e, sobretudo no que concerne à análise e interpretação de sua linguagem, de expressão, tipicamente nordestina. Porém, ao mergulharmos nessas veredas, poucos são os registros de mulheres produtoras desta manifestação artística. E quando um texto feminino merece aplausos e elogios, sistematicamente é considerado um texto forte e viril, e a poetisa obtém a consagração de seu talento ao ser considerado “uma mulher que canta como homem.”
Sabe-se que a figura da mulher é personagem mui recorrente na literatura popular. Um vasto continente de personagens femininos desfila pelas trovas, contudo quase não se tem notícia de poetisas. Mesmo conceituados pesquisadores, em demanda de elementos para compor suas vastas antologias, parecem desconhecer a existência de poetisas neste território. Todavia, uma pesquisa mais minuciosa encontrará mulheres repentistas desde os primeiros momentos do surgimento da cantoria. A que se deve esta quase ausência de cantadoras em antologias? Ao total desconhecimento dos antologistas, à falta de talento das artistas ou à tentativa arbitraria de tentar apagar indícios de uma produção feminina? Embora ainda haja muito a esmiuçar, felizmente, a existência de mulheres repentistas está comprovada em algumas referências bibliográficas.
Um estudo mais minucioso a respeito das mulheres repentistas encontrará, dentre tantas, uma certa Maria do Ribeirão, cabocla jovem e bela que segundo dizem versava muito melhor que seus cortejadores, Rita Medero, que residiu no Retiro da Boa Esperança, município de Barras, Estado do Piauí e morreu sexagenária em 1901 ou 1902, Maria Tebana do Rio Grande do Norte, Francisca Maria da Conceição, cognome Francisca Barrósa ou Chica Barrósa, nasceu em Patos Estado da Paraíba e viveu do final do Século XIX e começo do Século XX, Zefinha Anselmo, cearense de São Benedito, onde nasceu a 1º de agosto de 1915, além das cantadoras Maria do Chambocão, Naninha Gorda do Brejo, Luísa de França, Terezinha Tietre, Salvina Inês Gomes de Freitas Ferreira e a lendária Maria Assunção do Senhor, a Vovô Pangula, que conforme se diz era um exemplo de competência na arte do improviso. Piauiense de Simplício Mendes, Sertão, nasceu no dia 25 de novembro de 1918. Não era alfabetizada, não assinava o nome, porém seus versos impressionavam pela coerência e agilidade. “Em 1941, chegou a Teresina para ser empregada doméstica. Era tida como uma mulher vaidosa, que, apesar de pobre, não saía de casa sem os devidos cuidados com a aparência. A poetisa faleceu em 4 de setembro de 1990, com 72 anos.
Seguindo a mesma trilha, espalhadas pelos diversos estados brasileiros, algumas mulheres, apesar dos preconceitos existentes, contrariaram este ambiente machista, se aventurando pelo campo da arte do repente e mantendo viva esta tradição mnemônica , sempre a espera de uma oportunidade para se apresentar em encontros de cantadores ou até mesmo imortalizar sua voz em um disco. Em congressos de cantadores, não raro, quando há participação feminina, esta se restringe à mera observação ou apenas a papel coadjuvante, “sendo raríssimas às vezes em que podem competir livremente em dupla com outro repentista ou com outra violeira”. As cantadoras Maria Soledade e Minervina Ferreira, respectivamente, contaram: “Nos congressos, a mulher não tem vez. Quando acontece de abrir espaço, são duas humilhadas no meio daqueles homens todos. Um cachê insignificante... É raro a mulher participar de congresso de cantadores e quando aparece, geralmente é uma apresentação como especial. Especial é sem competir, entendeu? E das mulheres, eu, a Minervina e a Mocinha ainda fomos as que fizermos mais apresentações. As outras os espaços delas ainda são menores que o nosso.” “Os homens são privilegiados. Quando a gente participa de congresso, a mulher é sempre convidada para fazer uma apresentação especial. É gostoso isso, porque a mulher é especial, mas a gente também tem capacidade de competir. Eu já competi no meio das duplas masculinas, mas é muito raro isso, e eles são privilegiados.”
Conscientes desta exclusão, durante os anos oitenta, estas repentistas paraibanas, buscaram apoio de comerciantes e prefeituras locais para organizarem encontros de cantadoras. Houve apenas cinco edições, sendo um em Cuité e quatro em Alagoa Grande. Participaram de cada encontro dez cantatrizes, cinco duplas. Além de shows com o grupo de ciranda Os Negros do Caiana, Maria Aboiadeira (poetisa que cantava longas toadas apenas solfejadas que terminam com expressões como “ê boi” e “ê boiada”) e, uma dupla masculina como participação especial, retribuindo desta forma a “gentileza” concedida às repentistas em Congressos de Cantadores.
A mesa julgadora do encontro foi composta por homens e mulheres, porém houve uma maioria feminina. Para ordenação das regras, foi usado o mesmo regulamento dos congressos de cantadores. Convém registrar que durante o evento a imprensa local quase não deu atenção ao fato, o que salienta o enorme preconceito sofrido pelas poetisas. De acordo com Minervina Ferreira, apenas deram atenção ao evento professores da Universidade Federal da Paraíba, além de uma tímida matéria em um jornal.
Durante a pesquisa para consecução da nossa dissertação de mestrado, tendo como protagonistas as mulheres repentistas, tentamos encontrar matérias em revistas e jornais de 1999 a 2002 e quase não encontramos informações sobre este particular. Mesmo quando algum jornal focalizava encontro de cantadores e havia participação feminina, ou não divulgava a participação das repentistas ou apenas citava seus nomes sem maior relevância ao fato.
Também indagamos cantadores na tentativa de obter contatos que nos levassem a nosso objeto de estudo, no entanto, os artistas quase sempre diziam desconhecer a existência de mulheres nessa modalidade e os poucos que admitiam a existência, negavam conhecê-las e acrescentavam que as mesmas eram desprovidas de qualquer talento poético, salientando preconceitos enraizados. Dos poetas consultados, apenas um elogiou a habilidade feminina na arte do repente: Sebastião Marinho. Este inclusive apresentou-nos duas cantatrizes: Luzivan Matias e Lucinha Saraiva além de tecer significativos comentários a respeito da primeira, colocando-a em pé de igualdade das veteranas Mocinha de Passira e Minervina Ferreira, consideradas por ele como as duas maiores repentistas da época. Foram entrevistadas as violeiras Minervina Ferreira, Maria da Soledade, Severina Maria, Terezinha Maria, e as irmãs Santinha e Mocinha Maurício, Neuma da Silva, Francisca Maria, Mocinha de Passira, Luiza dos Anjos, Luzivan Matias e Lucinha Saraiva. A maioria delas não possuía nenhum registro fonográfico. Das cantadoras entrevistadas, apenas cinco tiveram suas vozes perpetuadas em disco. Os motivos foram vários: a discriminação específica, a falta de recursos, (já que a maioria delas não conseguia viver da própria arte e eram subempregadas), até o desconhecimento das gravadoras.
Durante as entrevistas às repentistas elas citaram nomes de outras mulheres que também se aventuraram pelo universo do repente, porém por motivos tais como: proibição do companheiro, dificuldade financeira, falta de perspectivas, dentre outros, declinaram de sua arte. Exemplo desta realidade são as pernambucanas Lídia Maria, Bernadete de Oliveira, Estelita José, Doralice, Elizete Claudino, Maria Sabino, Zeza Barbosa e Maria de Lurdes, as paraibanas Elza Galdino e Lita Cruz, Maria Lindalva de Currais Novos e a cearense Lurdinha de Oliveira. Lamenta-se que, havendo tão poucas cantatrizes, as adversidades sejam capazes de calarem as vozes que, já por tanto tempo, permaneceram em silêncio.
Este estudo apesar de bastante pálido, poderá fornecer futuros caminhos a serem trilhados no intuito de conhecer e disseminar as vozes femininas do repente nordestino.
Recife, agosto de 2005.
Fontes consultadas
AYALA, Maria Ignez Novais. No arranco do Grito (aspectos da cantoria nordestina). São Paulo: Ática, 1988.
AYALA, Maria Ignez Novais. Mulher Repentista: uma profissão, dificuldades várias. Seminário Nacional: Mulher e Literatura, 5., 1995. In: Anais [...]. Natal: EdUFRN, 1995.
MULHER repentista. [Foto neste texto]. Folha de Pernambuco, 08 mar. 2019. Disponível em: https://www.folhape.com.br/diversao/diversao/dia-da-mulher/2019/03/08/NWS,98236,71,1400,DIVERSAO,2330-CANTORIAS-REPENTES-CELEBRAM-DIA-MULHER-CARUARU-RECIFE.aspx. Acesso em: 25 out. 2019.
TOCALINO, Magda M. Renoldi. A escritura e a mulher brasileira no período colonial. Remate de letras, UNICAMP, São Paulo, n. 14, 1994.
RAFAEL, Ésio; FREIRE, Wilson. A mulher e a cantoria. Continente documento, Companhia Editora de Pernambuco, Recife, p. 14, 2003.
Como citar este texto
QUEIROZ, Laércio; SILVA, Leonardo Dantas Silva. Repente: presença feminina. In: Pesquisa Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2005. Disponível em: https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/repente-presenca-feminina/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2009.)