Preconceito Linguístico: o papel do professor
Última atualização: 03/05/2021
O professor de Língua Portuguesa tem um papel relevante numa escola, quando a ele compete dirimir as dúvidas do aluno quanto à normatividade o uso da própria língua. Ocorre que muitos não são linguistas e não se debruçam sobre a língua em uso para acompanhar sua mudança, limitando-se apenas a ensinar a língua formal, afastando-se com isso do entendimento que a língua acompanha o uso e que as significações são situadas sócio-histórica e culturalmente. Os cientistas da linguagem estão atentos aos usos e suas variações, por isso compreendem que somente um professor de língua materna avisado do ponto de vista da Linguística, está em melhores condições de orientar o aluno para a compreensão de sua própria língua.
O grande conflito por que passa o usuário da língua está diretamente relacionado à distância existente entre o uso natural da língua e o que se convencionou chamar de norma padrão.
Há muitas controvérsias conceituais a respeito do que vem a ser norma na língua. Muitos autores de variadas correntes teóricas já debateram o conceito de norma, a exemplo de Coseriu (1973, p. 95) quando diz que a norma é a realização da língua e a fala, a realização da norma. Para esse autor, a língua é o código, a norma o subcódigo e a fala a realização individual do subcódigo.
O primeiro tipo das variantes coletivas são normas regionais, o segundo, variantes culturais, ou seja, são normas que destacam a diversidade cultural dentro de uma comunidade de fala, como por exemplo, a chamada norma culta, que segundo pesquisa do Nurc , estabelece como padrão de fala nacional a fala de universitários, e norma popular, considerada a vulgar.
Há quem se refira à norma culta, como a norma de prestígio, nesse caso, vale questionar: o que vem a ser norma de mais prestígio? Qual o porquê desse prestígio? Para responder a tais questionamentos, vejamos o texto a seguir: "O português falado por classes mais favorecidas tem sua variedade prestigiada em detrimento de outras" (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 36). Segundo a autora, a norma de prestígio é a norma falada pela elite.
Quando Coseriu (1973, p. 90) afirma que a norma é "como se diz" algo e não "como se deve dizer", entendemos que o autor conceitua de norma o usual entre os falantes de uma língua, mas quando ele usa a locução verbal "deve dizer", então ele sinaliza para uma possibilidade de um uso que seria mais acertado para a língua. Infeliz na sua colocação sobre o uso, o autor abre espaço para instauração do de preconceito linguístico. Afinal, o que é certo e errado em língua?
Vale recordar a metáfora do iceberg, segundo a qual podemos dizer que a gramática normativa busca descrever uma pequena porção visível da língua que alguns chamam de norma culta. Obviamente que não se pode desmerecer essa tentativa de descrição, mas devemos estar conscientes de que se trata de uma descrição parcial, não podendo ser aplicada para o resto da língua, pois o restante do iceberg está submerso, ou seja, as demais maneiras de dizer o mundo vão depender do uso, nem sempre essa compreensão é percebida na superficialidade de regras e normas. Somente à medida que o usuário mergulha, ele vai descobrindo outras significações, outros usos. A pragmática determinará as normas, as quais estarão sempre a depender da língua em uso. Todo o problema das normas serem aplicadas a partir da ponta do iceberg reside na aplicação autoritária, intolerante e repressiva que impera na ideologia geradora do preconceito linguístico (BAGNO, 1999).
Há uma errônea visão que considera para cada evento que a língua oferece uma forma única de falar "corretamente" e outras formas "erradas", ou seja, as outras variantes são qualificadas como "erros". O que ocorre é que a língua oferece diversas formas de falar, e, em estudo diacrônico, percebemos que o oral guia a forma escrita que pode se tornar obsoleta, com o tempo. A escrita não muda a forma da fala, mas a fala, por sua vez, orienta a escrita.
Em pleno século XXI, com tantos avanços dos estudos linguísticos e sociolinguísticos, ainda encontram-se estudiosos da língua que se dedicam a atividades de corrigir os "erros de Português" cometidos pelos usuários em uso espontâneo da língua.
Um dos autores mais debatidos entre os linguistas, pela veemência com que vem tratando o que considera uso errado da língua portuguesa, entre os falantes do Português do Brasil, é Pasquale Cipro Neto, cujo programa "Nossa Língua Portuguesa" lhe rendera muitas honrarias. O professor Pasquale é criticado como "purista da língua" e por se considerar "único conhecedor" das normas que regem o Português. Segundo Bagno (1999), a Língua Portuguesa parece ser uma flor que nasceu no jardim de Pasquale e somente ele é quem sabe como regá-la.
Quando se fala de certo e errado em língua, compreende-se uma ingenuidade no trato da língua. Afinal, qual o certo e o errado quando se está em jogo a construção de sentidos? As discussões entre gramáticos e linguistas sobre a noção de erro já vem contando algum tempo, fazendo-se necessário a compreensão da noção de "desvio" e de "variação". Esses termos se confundem entre os usuários da língua, por isso torna-se relevante esclarecê-los.
O parâmetro para considerarmos certo uso como erro, desvio ou variação é o que consideramos como norma culta. Tomando por base as pesquisas do Nurc, é considerada como norma culta, a fala espontânea de universitários, o que não significa seguir aos rigores da gramática prescritiva, a chamada norma padrão, estabelecida pelos gramáticos. Nessa perspectiva, chamamos de desvio, aquele uso que se afasta do uso da norma culta, nesse caso, há que se considerar como desvio da norma culta os usos de falantes da zona rural, que se afastam da norma linguísica urbana.
De acordo com Bortoni-Ricardo (2005), a sociedade valoriza o uso da chamada norma culta, tanto o erudito quanto o trabalhador braçal "todos admiram o "falar bem" dos que se comunicam mediante a variedade de prestígio do Português, cujas normas estão prescritas na gramática.
É interessante constatar que, nas sociedades modernas, os valores culturais associados à norma linguística de prestígio, considerada correta, apropriada e bela, são ainda mais arraigados e persistentes que outros de natureza ética, moral e estética (BORTONI-RICARDO, 2005, p. 13).
Segundo a sociolinguista acima referenciada, para a sociedade, em geral, é mais fácil aceitar a diversidade de valores éticos, morais e estéticos do que a diversidade de usos linguísticos. Para Bordoni-Ricardo (2005, p. 14), tais valores culturais, em relação ao uso da norma prestigiada, ou seja, o prestígio relacionado ao Português-padrão pode ser questionado, desmistificado, apontado como influencia das desigualdades sociais, mas não pode ser negado, pois o comportamento em relação à língua "é um indicador da estratificação Social". Os variacionistas, por sua vez, vão de encontro à chamada norma culta, pois entendem que a língua não pode ser estudada sem considerar os usos não somente regionais, mas os diversos usos que se afastam da gramática prescritiva. Eles questionam a terminologia padrão, pois, segundo entendem, padrão mesmo é o uso flexível com que os usuários, na espontaneidade da fala, se comunicam. Uma característica inegável da língua é sua mobilidade; é seu caráter flexível. Há que se considerar, portanto, a variação linguística como inerente aos estudos linguísticos. Nessa perspectiva, a verdadeira norma seguida é a variação e a mudança, pois quando duas formas sobrevivem em tempo síncrono, dizemos que está em variação, quando ao longo do tempo uma das formas desaparece, sobrevivendo apenas uma das formas, entendemos que houve mudança.
À Sociolinguística interessa a relação entre a língua e a sociedade. São tantos e tão variados os assuntos que se chamam de estudos sociolinguísticos que nos levam a delimitá-los nessa discussão.
A sociologia da linguagem, por exemplo, trata dos fatores sociais relacionados ao uso da língua, no entanto, é um ramo das ciências sociais que se refere aos sistemas lingüísticos como instrumento das relações entre as instituições sociais (CAMACHO, 1984). Há também a Etnografia que descreve e analisa as formas dos eventos de fala; a Sociolinguística interacional, voltada para análise da conversação, e a Sociolinguística variacionista, área do nosso domínio de conhecimento, que trata da linguagem no contexto social.
Um sociolinguista vai recorrer às variações do contexto social para solucionar problemas da variação própria do sistema linguístico. Para tanto, observa a relação entre a estrutura da língua e a social.
Para alguns estudiosos importavam os processos fonológicos das estruturas linguísticas ao longo do tempo, ou seja, as transformações da língua nos níveis fonológico, lexical, sintático e semântico, e provar a sistematicidade da "variação", mostrando o seu fundamento e contextualizando-a. Esse modelo ia de encontro à questão da homogeneidade da língua, pois considerar a língua homogênica é fechar os olhos para o componente social. Weinreich, Labov e Herzog (2006, p. 29 apud CARVALHO, 2007) definiram os caminhos para o estudo da mudança linguística, a partir da aceitação do "axioma da heterogeneidade ordenada".
Nessa compreensão, passou a ser aceito e difundido na sociedade um modelo de descrição da língua e os fatores condicionantes de mudança, cujo objeto de estudo era a variação linguística. Seu objetivo principal é provar a ocorrência de "variação" na língua, bem como apontar os fundamentos. Variação e mudança são processos interligados. Antes de ocorrer a mudança na língua, o fenômeno (ou "o fato") passa por um processo de concorrência, ou seja, duas formas concorrem pela permanência entre os usuários da língua, quando uma das formas prevalece, entrando em desuso a outra, dizemos que ocorreu a mudança linguística.
É tênue essa passagem, da variação para a mudança, por isso muitos estudiosos da língua, a exemplo dos adeptos da Linguística histórica preferem falar de mudança, sem se debruçar no estudo da variação como o fez Labov. Para os variacionistas, quando duas formas estão em concorrência, não são apenas co-ocorrentes, elas estão em variação de uso, e uma delas sofre preconceito.
Mas o que é Preconceito linguístico?
O preconceito é uma forma de rejeição humilhante que denigre o ethos da vítima, além de ser uma pressão psicológica de constrangimento. As pessoas têm preconceitos e os expõem dia a dia. Com o preconceito linguístico não é diferente. Segundo Stella Bortoni (Cf. seção 2.2), o maior dos preconceitos é o preconceito linguístico, porque ele está enraizado culturalmente.
Segundo a supracitada autora, é mais fácil para as pessoas viver de acordo com os valores éticos, morais e estéticos do que aceitar a variação da língua, uma vez que os usos variáveis estão associados à camada da sociedade menos prestigiada. Além do mais, esses mesmos atores sociais (usuários da língua) valorizam o uso da norma, aceitando, portanto, o estigma que lhes são imputados, de que falam "errado", de que não conhecem a própria língua. O preconceito é alimentado por e eles mesmos. O prestígio relacionado ao Português-padrão pode até ser questionado, mas não negado, pois o comportamento em relação à língua "é um indicador da estratificação Social" . O que poucos se dão conta é que a variação linguística não é "privilégio" dos não escolarizados, pois a variação também atinge a norma culta (CARVALHO, 2009).
O papel da escola:
De acordo com algumas pesquisas, a escola alimenta o preconceito linguístico entre os alunos, como a principal acusadora do que determina como "certo" e "errado", tanto em relação à escrita quanto no que diz respeito à oralidade.
A escola deve atentar para as principais mudanças que ocorreram no processo de ensino-aprendizagem nessas últimas décadas. Faz-se necessário considerar que o professor deve respeitar os aspectos culturais e linguísticos do aluno antes da escola, para assim desenvolver nele um sentimento de segurança e autoestima. Basta tão-somente que o professor procure preservar os saberes sociolinguísticos dos alunos, bem como os valores culturais, permitindo com isso que eles possam ampliar o grau de competência linguística e comunicativa, aprendendo a se comunicar em outras variedades, a depender das circunstâncias.
Bortoni-Ricardo (2005, p. 26) alerta para uma análise prévia da comunidade de fala, em relação ao repertório verbal, ao que o aluno já tenha aprendido anteriormente no seu ambiente social. Com isso o professor estará se isento de preconceitos e oportunizando o aluno a um maior interesse pela língua favorecendo assim o processo de aprendizagem. Não se pode pretender substituir a linguagem e a cultura dos alunos de classes populares pela cultura dos de classe dominante, a cultura institucionalizada. Faz-se necessário, entretanto, que os primeiros tenham acesso à língua de prestígio por uma questão de ascensão social.
Qual o papel do professor neste contexto?
Nessa nova dinâmica proposta, o professor orienta o aluno para a realização de uma pesquisa que envolva o uso da língua e esse aluno trará a sua pesquisa para ser analisada em sala de aula, por ele mesmo e pelos colegas. O aluno não terá que reproduzir o que o professor trouxe e explicou, de acordo com o seu próprio raciocínio. Pelo contrário, o aluno poderá confrontar o seu uso, o de sua comunidade com as prescrições da gramática normativa e perceberá por si mesmo a grande lacuna entre a fala e a escrita, entre a chamada norma padrão tão difundida, cujo ensino é obrigatório e o uso. O aluno terá condição de entender a sua realidade, e, a partir desse entendimento terá condição de compreender a diversidade linguística, consequentemente, passará compreender as prescrições gramaticais e por que elas não são seguidas pelos usuários.
O professor deverá trazer informações sobre a diferença existente entre a língua falada e escrita, a partir da distância entre os usos do Português de Portugal e do Português falado no Brasil. Ele pode trabalhar, por exemplo, a referência de João Cabral de Melo Neto às palavras de Gilberto Freyre sobre o nosso português: "ninguém falou em português no brasileiro de sua língua" . O sociólogo de Apipucos se referia à disparidade existente entre o português falado no Brasil e o português falado em Portugal, cuja semelhança é mais visível na forma escrita da língua, que está mais "presa" à Norma Gramatical Brasileira (NGB). Com tais palavras, o autor abre espaço para inferir-se a existência de duas línguas: o português e o brasileiro. Eis aí uma discussão crítica que pode instigar os alunos a opinar sobre a questão e oportunizar o professor a solicitar um trabalho de pesquisa, com gravação, entrevistas, etc, pela qual os alunos (individualmente ou em equipe) se sentirão estimulados ao conhecimento e à compreensão da língua portuguesa a partir da compreensão do fenômeno de variação. Além disso, podem contribuir de fato com os estudos variacionistas.
Nessa perspectiva, é necessário que o professor levante uma discussão crítica com os alunos sobre os valores sociais atribuídos a cada variação linguística, mostrando que o uso de algumas variantes é discriminado e que certas produções orais ou escritas devem ser repensado. A aprendizagem da língua torna-se mais fácil, a partir do entendimento de seu uso, para que possa melhor conhecer e se dá a conhecer.
A partir da aceitação das diferenças linguísticas a ideia de certo e errado, em termos de língua, também se reduz. As abordagens nos mostraram que o professor, antes de tudo, deve ser um profissional compromissado com a educação, além de estar se consciente de que deve ser um canal que facilita o processo cognitivo do aluno em relação ao "bom uso" da língua materna, para isso deve está aberto às novidades da língua. Se, porém, partir para o radicalismo, por algum tipo de preconceito, não poderá motivar os aprendizes e não haverá, por conseguinte, compreensão satisfatória da língua, pois os alunos não estarão abertos às novas formas de uso e logo perderão interesse pelo estudo da língua, cujo uso nega que a língua segue um padrão.
Um professor avisado em relação aos conhecimentos sociolingüísticos vai entender a pertinência dos estudos lingüísticos variáveis e lutar para a sua inserção no projeto da política pedagógica da escola diminuindo o preconceito linguístico.
Recife, 20 de dezembro de 2018.
Fontes consultadas
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Como citar este texto
CARVALHO, Solange Carlos. Preconceito Linguístico: o papel do professor. In: Pesquisa Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2018. Disponível em: https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/preconceito-linguistico-o-papel-do-professor/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)