Praça do Derby (Recife, PE)
Última atualização: 05/10/2022
A Praça do Derby, que conhecemos hoje, com seu movimento incessante de pessoas, trânsito de veículos, ponto de confluência do sistema de ônibus, vindos de diversos bairros do Recife, tem muita história para contar. De uma campina abandonada, nos fins do século XIX, com seus mangues e alagados, até se tornar um dos principais pontos de referência da cidade, foi uma longa trajetória. Para compreender melhor este percurso histórico, vamos passear por acontecimentos e fatos ocorridos no espaço onde se localiza a Praça e nos seus arredores.
Nossa jornada se inicia em finais do século XIX, mais precisamente em 1888, quando foi fundado o Derby Club, que reunia os aficionados das corridas de cavalo, esporte muito popular na época. No mesmo ano, quando esta área ainda era conhecida como Estância, o Derby Club manda construir, no local, sua pista para as corridas: era o Prado da Estância. O cronista Mário Sette assim descreveu a inauguração do novo divertimento, em 1888:
Arquibancadas de ferro para 1.800 pessoas. Restaurante, botequins, sala para senhoras, pavilhão de pesagem dos jóqueis, salão dos sócios. Bebeu-se champanhe e houve discursos. 1
Mas, a alegria dos apostadores durou menos de uma década. Em 1897, o empresário Delmiro Gouveia adquiriu, em leilão, as instalações do Prado da Estância, e iniciou a implementação, na mesma área, de um projeto ousado para a época. O empreendimento compreendia a construção de um grande mercado, de um hotel e a implantação de um complexo de diversões, que incluía até um velódromo, onde aconteciam corridas de bicicleta. A iniciativa de Delmiro Gouveia modificou a fisionomia da localidade, que passou a ser conhecida como Derby, transformando-a no símbolo da civilização e do progresso da cidade. Compras, divertimentos, esportes, encontro com amigos, tudo isso iluminado à luz elétrica, a grande novidade da época.
O Mercado Coelho Cintra, organizado, seguro, asseado, higiênico, seguia as normas sanitárias em voga, inaugurando uma nova forma de consumo. Diferente dos demais mercados do Recife, associava compras, serviços e diversão, a exemplo dos shoppings centers atuais, funcionando todos os dias, das 6 às 22h. Sebastião de Vasconcellos Galvão, assim descreveu o mercado na época:
Um elegante edifício e, atualmente, no gênero, o país não possui outro melhor, nem igual (...). A sua área de extensão mede 129 metros de fachada por 28 de largura (...), possuindo todo o edifício 18 portões e 112 janelas de venezianas (...). O mercado, dividido em muitas secções destinadas aos diversos fins da sua natureza, contém 264 compartimentos, com balcões de pedra mármore, dispostos em forma de três ruas paralelas. Chafarizes e torneiras d’água, profusamente distribuídos por todo o edifício, com um perfeito sistema de esgoto, entretêm ali o maior asseio possível. 2
Nos mais de duzentos e cinquenta compartimentos do Mercado, eram comercializados os mais diversos produtos, desde alimentos e gêneros de primeira necessidade, o que atraía uma clientela popular, até artigos finos e sofisticados, incentivando a frequência das abastadas famílias da cidade. De acordo com Telma Correia, “lá se vendia gelo, todos os jornais diários, artigos para fumantes, havia filial da “Livraria Franceza”, perfumarias, lojas de tecidos de miudezas, de calçados, de quinquilharias, de louças, de brinquedos, de secos e molhados, de ferragens.”3
Mas, as pessoas não iam ao Derby apenas para as compras. Eram atraídas ao local por outro tipo de atividade – os novos e modernos divertimentos instalados no entorno do Mercado.
Frequentar o Derby possibilitava muitas experiências e novas emoções, sobretudo para as famílias pertencentes às elites da cidade. Seduzidas pela aura de modernidade e civilização, que cercava o novo ponto de encontro, essas pessoas se divertiam com as muitas atrações e novidades oferecidas. Eram apresentações teatrais, grupos de dança, bandas de música, exposições, queima de fogos, barraquinhas de prendas, de comidas e bebidas. Além dos tradicionais divertimentos, as modernas máquinas de diversão, movidas à eletricidade, como o carrossel e o megascópio, que projetava cenas e quadros animados, deslumbravam os frequentadores. Os jogos e esportes modernos, como as corridas de bicicleta, regatas, boliche, bilhar e tiro ao alvo, entusiasmavam as pessoas, que vibravam e torciam pelos seus competidores preferidos. O “centro de diversões” atraía uma multidão ao local. De acordo com o Jornal Pequeno, o número de frequentadores chegava a 8 mil pessoas!4 Tudo isto sob o fascínio e encantamento provocados por uma das maiores atrações do empreendimento: a iluminação elétrica, que convertia a noite em dia.
Diversões no Derby
Corridas de bicicleta de 1 às 5h da tarde e das 7 às 10 da noite. Grande batalha de flores e confete, a pedido. Estreia da nova e surpreendente iluminação elétrica, cujos aparelhos foram contratados especial e propositalmente para o velódromo, achando-se tão bem distribuídos os focos respectivos, que não há o que contestar: a noite tornar-se-á dia. (...). O carrossel funcionará toda a tarde e à noite (...). Duas bandas de música abrilhantarão a festa, executando as melhores peças do seu repertório.5
O Grande Hotel Internacional, conhecido como Hotel do Derby,6 também fazia parte do empreendimento e causava boa impressão pelas instalações, decoração e pelo edifício, construído especialmente para essa finalidade. Voltado para o rio Capibaribe, o prédio do hotel constituía ponto estratégico para acompanhar as regatas, observar a vista das águas ou aproveitar o ar fresco.7 De acordo com propagandas da época, o hotel contava com 60 quartos e salas, salão de leitura, sala de jogos e botes para passeios no rio.
Mas, todo esse complexo, criado por Delmiro Gouveia, teve vida curta. Em 1900, por questões políticas e disputas com o grupo ligado a Rosa e Silva, poderoso chefe político local de quem Delmiro era adversário implacável, o empreendimento foi alvo de um ataque. O Mercado foi incendiado e todo o projeto implantado por Delmiro veio a falir logo em seguida.
Duas décadas depois, durante o Governo Sérgio Loreto (1922-1926), mais um projeto urbanístico de grande porte foi implantado na área do Derby. Foram realizadas obras de dragagem e aterro dos alagados, construção do canal, pontes, abertura de ruas e avenidas, a criação de uma praça e a edificação do Quartel da Força Pública. Segundo a Revista de Pernambuco, periódico editado pelo Governo do Estado, para divulgar as ações e obras do Governo Loreto, em julho de 1924, só na dragagem da área trabalhavam cerca de 300 homens! 8
Chamado pela imprensa da época de Parque do Derby, o projeto transformava toda a área. Uma elegante Praça com arborização e ajardinamento, lagos, uma pérgola em estilo Dórico e passeios, seriam atrativos da proposta.
O plano previa, ainda, a transformação do bairro e o entorno da Praça em local de moradia para as elites da cidade, com a venda de lotes, a partir de um edital público. Para estimular a compra dos terrenos e a transformação da área em um bairro residencial para as elites da cidade, a propaganda do governo divulgava: “Vai surgir, na abandonada campina do Derby, um bairro novo, salubre e pitoresco. Se um local existe que reúna as condições de salubridade, a graça e o encanto da paisagem, há de ser o Derby.”9
A construção do Quartel da Força Pública também constava do projeto proposto no Governo Sérgio Loreto. Erigido no local onde antes ficava o Mercado Coelho Cintra, o Quartel possuía 130 metros de frente e 23 de largura. A edificação incluía alojamento para batalhões, salas administrativas, gabinetes para comandante geral e oficiais, celas de prisão, salão nobre e outros pavilhões, que abrigariam os espaços de serviços: cozinha, instalações sanitárias, gabinetes médicos, baias e cocheiras para os cavalos, etc.
As obras foram iniciadas em abril de 1924, e o edifício foi inaugurado em outubro do mesmo ano. Antes de ser utilizado como quartel, o prédio abrigou a Exposição Geral de Pernambuco, um dos eventos comemorativos dos dois anos do Governo Sérgio Loreto. A Exposição tinha como objetivo apresentar ao público um resumo da produção industrial, agrícola e das riquezas do Estado, evidenciando o sucesso da gestão e das ações do então governador. De acordo com a imprensa da época, a mostra revelava “as potencialidades e grandezas de Pernambuco.”
No final dos anos 1920, mais precisamente a partir de 1927, era incessante o movimento de estudantes nas imediações da Praça do Derby. O motivo? No local onde antes funcionara o Hotel Internacional, foi inaugurado o novo prédio da Faculdade de Medicina de Pernambuco, dirigida, nesse período, pelo médico Octávio de Freitas. Os futuros médicos, no masculino, pois nesta época a quase totalidade das turmas era formada por homens, fizeram dos jardins da Praça um dos seus pontos de encontro preferido. O cenário da Praça foi palco de conversas, encontros, romances frustrados e muitos namoros.
Na década de 1930, a fisionomia da Praça mudou. A Diretoria de Parques e Jardins do Estado contratou o paisagista, então iniciante na profissão, Roberto Burle Marx, para planejar reformas em alguns jardins e praças da cidade, dentre elas a Praça do Derby. De acordo com a pesquisadora, Aline de Figueirôa Silva,
entre 1935 e 1937, Burle Marx executou os projetos do Jardim da Casa Forte, hoje Praça de Casa Forte; Jardim do Benfica, atual Praça Euclides da Cunha; Praça Artur Oscar; Praça da República; Parque do Derby; Praça Coração de Jesus (ou Praça Chora Menino) e Parque Amorim. 10
Considerado o criador do jardim moderno no Brasil, Burle Marx preservou a essência do projeto original da Praça do Derby, mas introduziu novos conceitos e elementos paisagísticos no jardim. Reconfigurou os passeios, criou novos percursos, introduziu pequenos lagos e canteiros de espécies nativas, como as palmeiras, buscando suavizar um certo aspecto de rigidez da proposta anterior.11
Das décadas de 1960 a 1980, a Praça do Derby era uma opção de passeio e divertimento para as crianças. Seu parque, com balanços, escorregos e outros brinquedos, fazia a alegria dos pequenos. Em 1970, um novo atrativo enchia a Praça de gente nos finais de semana. O famoso peixe-boi Xica, que viveu durante 22 anos em um pequeno tanque, despertava a curiosidade de adultos e crianças. O animal sobreviveu ao tratamento inadequado e aos maus-tratos dos visitantes, que muitas vezes o molestavam e machucavam, até ser transferido, em 1992, depois de um processo judicial, para o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Aquáticos (CMA), em Itamaracá, onde morreu, em 2015, com 52 anos.12
Hoje, menos praça, mais local de passagem, menos divertimento, mais local de estacionamento, a Praça sobrevive, cercada de consultórios e clínicas médicas, sob os passos apressados de transeuntes que correm em busca do seu ônibus, cercados do barulho ensurdecedor do trânsito de veículos particulares e coletivos. Pena que mal conseguem observar a beleza que os cerca e se questionar sobre a história desse lugar tão significativo para a cidade do Recife.
Recife, 04 de outubro de 2022.
Fontes consultadas
* Doutora em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFPE. Pesquisadora Titular da Fundaj.
1SETTE, Mário. Arruar - História Pitoresca do Recife Antigo, Governo do Estado de Pernambuco, 1978, p. 179.
2GALVÃO, Sebastião de Vasconcellos. Diccionario Chorographico, Historico e Estatístico de Pernambuco. RJ: Imprensa Nacional, 1908. Apud CORREIA, Telma de Barros. (1999). Comércio e lazer no início do século: o caso do Derby no Recife. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Fauusp, (7), 37-60. https://doi.org/10.11606 Acesso em 4/08/2020. Grifo meu.
3CORREIA, Telma de Barros. (1999). Comércio e lazer no início do século: o caso do Derby no Recife. Op. Cit. p. 46.
4Jornal Pequeno, 27 dez. 1899, p. 2. Apud CORREIA, Telma de Barros (1999). Op cit. p. 52.
5Jornal Pequeno, 03/03/1900. Coluna “Por Conta Alheia”. Grifo meu.
6O Grande Hotel Internacional foi construído na área onde hoje se encontra o edifício do Memorial de Medicina de Pernambuco.
7CORREIA, Telma de Barros. (1999). Comércio e lazer no início do século: o caso do Derby no Recife. Op. Cit. p. 50.
8Revista de Pernambuco, julho, 1924. Acervo: Fundaj.
9Revista de Pernambuco, julho de 1924 e dezembro de 1924.
10SILVA, Aline de Figueirôa. O projeto paisagístico dos jardins públicos do Recife de 1872 a 1937. 2007.218 p. Recife: Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento Urbano) UFPE, 2007. Disponível em https://repositorio.ufpe.br/bitstream/123456789/3616/1/arquivo5496_1.pdf Acesso em 04/08/2020.
11Ver o Decreto Municipal nº 29.537 de 23 de março de 2016, que dispõe sobre a classificação como jardins históricos de Burle Marx dos espaços públicos do Recife, integrando-os ao Sistema Municipal de Unidades Protegidas, instituído pela lei municipal nº 18.014, de 09 de maio de 2014.
12 Fonte: site do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Aquáticos (CMA). https://www.icmbio.gov.br/cma/destaques/67-a-peixe-boi-cinquentona.html Acesso em 20/08/2020.
Como citar este texto
COUCEIRO, Sylvia Costa. Praça do Derby (Recife,PE). In: PESQUISA Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2022. Disponível em:https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/praca-do-derby-recife-pe/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)