Peste Negra e suas Interpretações, A: o Imaginário das Pandemias no Ocidente
Última atualização: 03/05/2021
As reações geradas pela pandemia da Covid-19 nos trazem uma reflexão sobre as ansiedades e medos despertados por uma ameaça de saúde generalizada. Da Peste Negra à Covid-19, os vírus deixam nos homens uma amarga sensação de desamparo diante do que sentem ser inevitável. Ao se sentir impotentes, eles se afastam do discurso médico/científico, na tentativa de encontrar causas para aquilo que parece não ter nenhuma. Nesta busca de velhas e novas interpretações, disputam o lugar de “geradoras de sentido” diante de uma experiência-limite. Dentre estas explicações, a recorrência ao mito e ao imaginário se traduz em uma constante histórica, apelando para um sentido último, uma razão metafísica, capaz de explicar o sofrimento.
Mas o que queremos dizer quando usamos o termo imaginário? Afinal, a doença e suas consequências são fenômenos físicos, associados à biologia, e não à imaginação. Para estabelecer nosso entendimento sobre a relação entre imaginário e pandemias, iremos nos valer da definição do antropólogo francês Gilbert Durand (2001), criador da Teoria Geral do Imaginário, para quem não existe separação entre imaginário e realidade, uma vez que nossa maneira de apreender o mundo implica o ato de interpretá-lo, ou seja, de estabelecer uma representação do vivido. Assim sendo, não há oposição entre o racional e o simbólico, uma vez que todo pensamento humano é representação, sendo o imaginário o “conector” obrigatório, através do qual se constitui toda representação humana. É por isso, que, segundo Durand, “o imaginário antecede, transcende e ordena todas as atividades do pensamento humano” (2001, p. 42).1
De acordo com esta teoria, são a angústia diante da passagem do tempo e a consciência da morte que constituem a base comum à experiência humana. É exatamente no esforço de dar uma resposta a esta angústia que a imaginação erige suas criações. Os símbolos, mitos e ritos propiciam ao homem uma forma de Ser no mundo e encarar a própria transitoriedade.
Esta (con)vivência com o trágico da condição humana se revela em toda a sua força nos períodos em que somos confrontados com algo, simultaneamente mortal e fora do nosso controle, como ocorre com as pandemias. É diante desta percepção de desamparo que o Imaginário ergue suas armas buscando construir sentido, e, ao mesmo tempo, propiciar ao homem uma forma simbólica de luta e de certeza da vitória. Porque toda construção imaginária é, na verdade, uma antecipação da vitória simbólica do homem sobre a morte. Ao representar as potências da morte e da destruição, a imaginação busca, na verdade, domesticá-las, reduzindo seus poderes e as atraindo para o campo em que é possível vencê-las com as armas da luz. É este o sentido das construções imaginárias sobre as pandemias, descobrir sua fonte para, então, identificar as armas capazes de derrotá-las.
Este pensamento, em termos de oposições, caracteriza aquilo que Gilbert Durand (2001) denomina Regime Heroico do Imaginário, que, com suas representações de luz e trevas em um eterno combate, estrutura o pensamento do Ocidente.2 Como parte da cosmovisão herdada do dualismo cristão, o mundo aqui é encarado como o palco de um confronto metafísico entre as forças do bem e do mal, entre Deus e o seu Inimigo. Interpretadas por esta ótica, a doença e a morte têm apenas duas explicações possíveis: ou são o resultado da ação do Diabo na Terra ou são um Castigo Divino, em função das transgressões humanas.
Esta representação simbólica, entretanto, necessita dialogar com o Zeitgeist, o espírito do tempo. Assim, cada época vai matizar a noção de castigo pelas transgressões humanas, através da relação com os conhecimentos sobre a natureza das doenças disponíveis em um determinado momento histórico.
A Peste Negra: modelo arquetípico
Estas possibilidades de interpretação foram, aos poucos, se estabelecendo durante o enfrentamento da maior das pandemias registradas pela história do Ocidente: a Peste Negra.3 Estima-se que durante o momento mais delicado da Peste, entre os anos de 1348-1350, a mortandade, oscilando muito entre regiões, foi de dois terços a um oitavo da população europeia. O cálculo geral indica que a Europa ocidental tenha perdido cerca de 30% de seus habitantes naquela ocasião.
Diante de uma catástrofe de tal dimensão, o homem medieval buscou três tipos de explicação. A primeira – a partir de um ponto de vista científico – atribuía a doença aos miasmas e à corrupção do ar; a segunda – operando do ponto de vista da relação do homem com o divino –, a interpretava como o castigo de Deus pelos pecados da humanidade; e, por fim, a terceira – operando do ponto de vista das relações sociais – culpava alguns dos grupos sociais marginalizados, acusando-os de conspiração ou de envenenamento. Dentre estas, a ideia do castigo divino foi, de longe, a mais generalizada, impulsionando uma religiosidade exacerbada dominada pela culpa.
O castigo divino ou minha culpa, minha máxima culpa
O choque suscitado pela letalidade do contágio transformou o cotidiano das pessoas. Desesperado, o povo buscava uma explicação para a calamidade. Para alguns, tratava-se de castigo divino, punição dos pecados, aproximação do Apocalipse. Embora esta não tenha sido a única interpretação da época, foi, sem dúvida, amplamente majoritária. Com efeito, a ideia mais difundida foi a de que a epidemia havia sido causada “pela corrupção moral do homem e pela cólera de Deus” (MEISS, 1964, p. 75 apud QUIRICO, 2012, p. 145).
Acreditando que o surto seria o prenúncio do fim dos tempos, muitos buscaram meios de expiar seus pecados ainda em vida. Estando às portas do encontro com Deus, a confissão, as doações à Igreja e todas as boas obras pareciam não ser suficientes. É este sentimento que parece impulsionar a emergência dos grupos de flagelantes: homens e mulheres que se flagelavam em praça pública, na esperança de, ao imitar os sofrimentos de Cristo, conseguirem aplacar a ira divina. E foram os flagelantes, que, durante o auge da sua popularidade, apresentaram à população uma explicação alternativa para a Peste: a ação dos velhos inimigos da cristandade – os judeus.
O diabo e seus agentes ou em busca do bode expiatório
Conforme salientamos no início deste texto, na perspectiva dualista, característica do imaginário ocidental, as catástrofes naturais tendem a ser lidas, ora como castigo divino, ora como resultado da ação do inimigo de Deus sobre a terra. Nesta segunda perspectiva, a busca dirige-se, não para a redenção dos pecados do grupo, mas para a identificação das forças do mal e seus agentes. E, dentre todos, destacavam-se os judeus – tidos desde sempre como os maiores inimigos de Cristo e de toda a cristandade.
Deste modo, para alguns, a culpa pela enfermidade recaiu sobre os judeus e não apenas de maneira metafísica – já que a sua recusa à conversão era interpretada por muitos cristãos como a causa das mazelas que abatiam os fiéis. Mas, também, de modo físico, uma vez que se acreditava na acusação segundo a qual os judeus, juntamente com os leprosos, haviam envenenado as fontes e poços de água. Venenos e feitiçaria eram, segundo muitos cristãos, os métodos mais utilizados por estes pecadores reunidos em complô. Como resultado desta interpretação, apenas no período compreendido entre os anos 1348 e 1351 – o auge da pandemia –, mais de 200 comunidades judaicas foram erradicadas.
Retenhamos, portanto, estas duas ideias centrais do Regime Heroico da imagem, diante da desorientação metafísica causada pela mortandade desenfreada associada às epidemias: castigo divino ou ação do diabo e seus agentes humanos – de modo geral os grupos excluídos da sociedade, que passam a ser vistos como inimigos de Deus e da ordem social. Agora, de posse destas possibilidades interpretativas fornecidas pelo modelo da Peste Negra, façamos um exercício de sociologia das profundezas e vejamos como estes arquétipos: a fúria divina ou a luta da luz contra as trevas se atualizaram, com maior ou menor potência simbólica, em outros momentos históricos.
Leia mais:
O imaginário das pandemias no Ocidente Parte II – Espanhola: A gripe que ninguém queria.
O imaginário das pandemias no Ocidente Parte III – Covid-19 e o vírus que parou o mundo.
1Para Durand (2001), as produções do Imaginário são atualizadas, através das mais variadas formas de expressão da cultura: linguagem, mito, magia, religião, arte, ciência, etc.
2O termo “Ocidente” é empregado aqui para indicar, não uma localização geográfica, mas antes uma relação específica com a técnica, o sentido e o poder, um modo específico de conceber nossa relação com o mundo.
3O nome deriva das manchas escuras que apareciam na pele dos enfermos.
Recife, 26 de fevereiro de 2021.
Fontes consultadas
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Como citar este texto
OLIVEIRA, Rosalira dos Santos. A Peste Negra e suas interpretações: o imaginário das pandemias no Ocidente. In: Pesquisa Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2021. Disponível em: https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/peste-negra-e-suas-interpretacoes-o-imaginario-das-pandemias-no-ocidente/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)