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Coleção Francisco Rodrigues: retratos fotográficos, 1840-1920

A Coleção Francisco Rodrigues, pertencente ao acervo da Fundação Joaquim Nabuco, é formada por aproximadamente 17 mil retratos datados de 1840 a 1920. A diversidade da sociedade brasileira, em pleno processo de formação e com forte acento regional, encontra nas fotografias uma impressionante fonte de registro e expressão.

Coleção Francisco Rodrigues: retratos fotográficos, 1840-1920

Última atualização: 28/08/2022

Por: Rita de Cássia Barbosa de Araújo - Pesquisadora da Fundaj - Antropóloga e Historiadora - Doutora em Historia Social

A Coleção Francisco Rodrigues é formada por aproximadamente 17 mil unidades documentais, entre estojos, álbuns, placas de daguerreótipos, ambrótipos, ferrótipos, talbótipos e retratos fotográficos em formato carte de visite e carte cabinet, de indivíduos, famílias e grupos fotografados entre 1840 e 1920, constituindo preciosas e instigantes fontes de pesquisa histórica. Estudiosos da fotografia e do colecionismo consideram-na uma das mais importantes coleções do gênero no país, a exemplo de Pedro Vasquez, fotógrafo, pesquisador, professor e curador de fotografia, que, em depoimento assertivo, afirma que “esse é sem dúvida alguma o maior e mais rico acervo de retratos oitocentista e da primeira metade do século XX existente numa instituição pública”, referindo ao fato desta monumental Coleção encontrar-se preservada e disponível à consulta pública no Centro de Documentação e de Estudos da História – Cehibra, da Fundação Joaquim Nabuco.

 

O conjunto fotográfico contém diversas informações textuais e imagéticas produzidas durante o período de vigência e declínio da sociedade agrária escravista, radicada sobretudo no atual Nordeste brasileiro, e o do surgimento da sociedade de base industrial urbana cujo centro dinâmico localizava-se na Região Sudeste. O período de produção, circulação e de atribuição dos primeiros sentidos e significados dos registros visuais em apreço corresponde também àquele em que ocorreram importantes mudanças na sociedade brasileira, tais como a abolição da escravidão em 1888, que gerou as condições para uma mais franca expansão do capitalismo no Brasil; bem como o fim do Império e a implantação da República em 1889.

 

Na Coleção, encontram-se reunidos retratos de homens e mulheres, jovens e crianças, de pessoas brancas, negras e mestiças, a maioria fotografada por renomados profissionais em seus estúdios comerciais instalados não apenas em Pernambuco, mas em diversas cidades do país e mesmo no estrangeiro. Este último dado é indicativo, entre outros, da circulação existente à época de fotógrafos profissionais, fotografias e mesmo de alguns afortunados viajantes que transitavam e por vezes se estabeleciam nas grandes cidades brasileiras, na Europa e nos Estados Unidos. Retratos de senhores de engenho, barões e baronesas, viscondes e viscondessas do Império aparecem juntos aos rostos e corpos dos que os serviam: mestiços, negras e negros escravizados, alforriados e livres, embora esses compareçam em quantitativo bem menor que os primeiros. A esses somavam-se as fotografias de usineiros e comerciantes de importação e exportação, políticos, militares e heróis de batalhas e guerras, funcionários públicos, pequenos comerciantes, profissionais liberais, professores e estudantes, artistas famosos e desconhecidos do grande público, de um e outros sexos.

 

A história da formação desse conjunto fotográfico começou no Recife na década de 1920, quando Augusto Rodrigues, cirurgião-dentista e sócio do Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano, teve a iniciativa de reunir retratos de membros das tradicionais famílias da aristocracia pernambucana para compor um livro que pensava publicar. Em 1937, o sociólogo e antropólogo Gilberto Freyre divulgou artigo no Diario de Pernambuco sobre a coleção de retratos, elogiando a iniciativa e o trabalho paciente do colecionador e atribuindo valor documental às fotografias, por ele pioneiramente consideradas fontes de pesquisa sociológica, histórica e antropológica sobre o Brasil.  

 

Com a morte do patriarca em 1938, Francisco Rodrigues, filho primogênito do casal Augusto Rodrigues e Maria do Carmo da Rosa Borges, deu continuidade à coleção, ampliando e ordenando o conjunto fotográfico e realizando pesquisas junto às famílias para identificação dos ancestrais. Francisco Rodrigues temia que as fotografias antigas se dispersassem e fossem relegadas ao esquecimento pelas novas gerações, gente que vivia nas cidades e ansiava pelas novidades trazidas pelas modernas indústrias e tecnologias. Para muitas dessas pessoas, o mundo que vicejara no passado agrário tradicional não mais representava um ideal de vida ou memória a saudosamente cultivar – embora boa parte continuasse a depender da renda e a desfrutar das benesses sociais e políticas gerada pelos antepassados no mundo dos canaviais.

 

Entre as décadas de 1920 e 1930, anos de formação do núcleo original da Coleção, as elites intelectuais e políticas do país começaram a desenvolver uma noção mais clara sobre a importância do patrimônio histórico, artístico e cultural para a cultura brasileira e a construção de um sentimento comum de identidade nacional. Embora não houvesse consenso entre os que debatiam o assunto, determinados monumentos, obras arquitetônicas, objetos de arte, vestígios arqueológicos e documentos, por eles considerados representativos do passado histórico brasileiro, passaram a ser valorizados e a requerer ações de preservação, divulgação, estudos e pesquisas. Os anos 1920 foram marcados por grandes acontecimentos no campo intelectual, da arte e da cultura, como a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo, e o Movimento Regionalista do Nordeste de 1926, cujo principal idealizador e animador era o pernambucano Gilberto Freyre. Nesta década, foram criadas a Inspetoria Estadual dos Monumentos Nacionais de Minas Gerais em 1926, a da Bahia em 1927, e a de Pernambuco em 1928. A Constituição de 1934 incorporou pela primeira vez a noção de patrimônio histórico e artístico nacional; e, em 13 de janeiro de 1937, por meio da Lei nº 378, foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - Sphan. 

 

Em 1956, quando o conjunto somava cerca de cinco mil peças, o Governo de Pernambuco interessou-se por adquirir a coleção para compor o patrimônio histórico, artístico e cultural do Estado. A proposta, porém, não obteve boa aceitação entre os deputados da Assembleia Legislativa do Estado de Pernambuco, e a negociação entre governo estadual e colecionador malogrou. Poucos anos depois, em 1960, o conjunto foi adquirido, por compra, pelo extinto Instituto do Açúcar e do Álcool – I.A.A., para integrar o acervo do Museu do Açúcar, criado em 3 de agosto deste mesmo ano. O contrato firmado entre o Instituto do Açúcar e do Álcool e o colecionador informa que a coleção de fotografias era então constituída por 12.750 peças. O Museu do Açúcar, sediado no Recife, tinha por objetivo promover aspectos das características culturais da formação das áreas açucareiras no Brasil e em outras partes produtoras de açúcar no mundo. No entendimento dos organizadores do Museu, os retratos da Coleção Francisco Rodrigues atendiam perfeitamente ao perfil museológico da nova instituição. Deste modo, ao praticamente restringirem seu conteúdo às intenções do primeiro colecionador e de exaltarem o núcleo de formação original do conjunto, contribuíram para construir, reforçar e difundir certo sentido sobre a Coleção Francisco Rodrigues e uma dada memória sobre o Nordeste brasileiro segundo os quais esta região havia sido, em um passado relativamente distante, o centro da chamada civilização do açúcar e berço de formação histórica da sociedade brasileira.

 

Em 1977, extinto o Museu do Açúcar, seus bens patrimoniais tangíveis e intangíveis, como a biblioteca, os objetos museológicos e os documentos textuais e iconográficos, foram transferidos para o então Instituto Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais, atual Fundação Joaquim Nabuco - Fundaj. O acervo iconográfico, formado por pinturas, gravuras, desenhos, rótulos comerciais e coleções fotográficas, passou a integrar a recém-criada Divisão de Fotografia, depois, Departamento de Iconografia e, desde alguns anos, a Francisco Rodrigues encontra-se sob responsabilidade do Centro de Documentação e de Estudos da História Brasileira – Cehibra.     

 

No início da década de 1980, a Fundação Joaquim Nabuco e a Fundação Nacional de Artes – Funarte, uniram-se para a realização da exposição O retrato brasileiro: fotografias da coleção Francisco Rodrigues, 1840-1920, ocorrida no Rio de Janeiro em 1983. Era a primeira vez que os “velhos” retratos deixavam Pernambuco. Ao pesquisarem o repositório fotográfico, os técnicos da Funarte, Nadja Peregrino e Evandro Ouriques, disseram tratar-se de “Um conjunto extraordinário, cobrindo desde 1840 até as primeiras décadas deste século. Sem dúvida, um dos maiores e mais significativos acervos fotográficos de todo o Brasil.” Em ensaio dedicado à Coleção Francisco Rodrigues, publicado no livro resultante da exposição, Gilberto Freyre lançou o conceito de “sociofotografia”, reafirmando o valor da fotografia como documento de fundamental importância para a interpretação de aspectos da vida social brasileira. Dentre as “sociofotografias” existentes na Coleção Francisco Rodrigues, destacava os retratos em que as mães-pretas ou amas-de-leite apareciam ao lado de seus sinhozinhos e de suas sinhazinhas, em cujas expressões faciais e corporais desprendia-se, de acordo com a argumentação do antropólogo, todo zelo e carinho que sentiam pelos seus pequenos proprietários.    

 

Um desses retratos, o da ama-de-leite Mônica com o sinhozinho Arthur Gomes Leal, executado pelo fotógrafo F. Vilella em seu estúdio no Recife, por volta de 1860, tornou-se símbolo da formação histórica e social brasileira, embora por vieses interpretativos bastante diferentes entre si, se não mesmo, antagônicos. Algumas abordagens historiográficas consideram esta fotografia prova documental inconteste da convivência afetiva e harmoniosa que se estabelecera entre senhores e escravizados no passado patriarcal escravocrata brasileiro. Constituiria mesmo um dos traços mais singulares da formação histórica da sociedade e da identidade cultural brasileiras, de acordo com tese amplamente defendida e difundida por Gilberto Freyre.

 

Em outra perspectiva historiográfica, como a adotada por Luiz Felipe de Alencastro e Lilia Schwarcz, a fotografia de Vilella é considerada um símbolo da sociedade brasileira exatamente por seu poder de evocar relações sociais, raciais, de gênero e de poder que se formaram desde remotos tempos coloniais, evidenciando marcas desconcertantes do sistema de dominação política e econômica que caracterizam a sociedade brasileira no passado e no presente: a violência, a desigualdade social e o racismo estruturais. “Quase todo o Brasil cabe nessa foto”, escreveu Luiz Felipe de Alencastro em 1997.

 

O debate historiográfico em torno das fotografias das amas-de-leite com seus sinhozinhos e sinhazinhas é apenas uma mostra das infinitas possibilidades de exploração intelectual e de uso criativo das fotografias da Francisco Rodrigues. Retratos dos que se foram e que, de algum modo, espelham-nos e indagam-nos, possibilitando diálogos entre o tempo presente e o passado de que nos restam vestígios, representações, significações e muito a conhecer.

 

 

Recife, 8 de junho de 2020

Fontes consultadas

ALENCASTRO, Luiz Felipe de. História da vida privada no Brasil. Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1997.

 

ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de; MOTTA, Teresa Alexandrina (orgs.). O retrato e o tempo: Coleção Francisco Rodrigues. Recife: Editora Massangana, 2014.

 

OURIQUES, Evandro; PEREGRINO, Nadja. Apresentação. In: FREYRE, Gilberto; PONCE DE LEON, Fernando; VASQUEZ, Pedro (orgs.). O retrato brasileiro: fotografias da Coleção Francisco Rodrigues, 1840-1920. Rio de Janeiro: Funarte, Núcleo de Fotografia; Fundaj, Departamento de Iconografia, 1983.

 

SCHWARCZ, Lilia. Duas Mônicas: nome e anonimato nas fotos de amas de leites brasileiras. Nexo Jornal. 9 mar. 2020. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2020/Duas-M%C3%B4nicas-nome-e-anonimato-nas-fotos-de-amas-de-leite-brasileiras>. Acesso em: 06 jun. 2020.

 

VASQUEZ, Pedro. Espelhos de papel: reconhecimento e estranhamentos nos retratos fotográficos da Coleção Francisco Rodrigues. In: ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de; MOTTA, Teresa Alexandrina (orgs.). O retrato e o tempo: Coleção Francisco Rodrigues. Recife: Editora Massangana, 2014.

Como citar este texto

ARAÚJO, Rita de Cássia Barbosa de. Coleção Francisco Rodrigues: retratos fotográficos, 1840-1920. In: PESQUISA Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2021. Disponível em:https:. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)