Miró da Muribeca: entre o lirismo e a periferia
Última atualização: 24/11/2023
João Flávio Cordeiro da Silva, nasceu no dia 6 de agosto de 1960 no Recife e foi morador do Bairro da Muribeca durante muitos anos.
Seu nome de batismo foi em homenagem ao médico que fez o parto de sua mãe, Dona Joaquina, e salvou a vida de mãe e filho que correram risco de morte no momento de seu nascimento.
O sonho de juventude de se tornar jogador de futebol trouxe o apelido que surgiu quando, por jogar muito bem, João Flávio foi comparado ao jogador dos anos 70 Mirobaldo, do Time Santa Cruz (adversário do Sport Clube do Recife, do qual era torcedor). O nome foi abreviado e “Miró” passou a ser a sua assinatura artística. Como era morador da Muribeca, o nome do bairro foi adicionado ao apelido e assim se transformou na sua marca : “Miró da Muribeca”.
Miró também residiu em outros bairros recifenses: Santo Amaro, Bomba do Hemetério, Ibura e Boa Vista e em outras cidades do Brasil: Fortaleza (CE), Petrolina (PE), Visconde de Mauá (RJ) e São Paulo.
" A vida é um ônibus/
vai levando você/
O problema é em que parada/ nós vamos
descer"
E como foi que esse recifense que veio da periferia da capital pernambucana acabou se tornando referência na poesia urbana nacional?
O rapaz que sonhava em ser jogador de futebol presenciou um ato de violência no centro do Recife nos anos 1980 - se tratava de uma batida policial contra alguns jovens - e foi ali que nasceu o poeta. Miró escreveu "Quatro horas e um minuto", título que fazia referência ao horário em que ocorreu o fato que ele havia presenciado. A partir desse episódio sua vida passou a girar em torno da poesia.
Quatro horas e um minuto
“Quatro horas
Quatro ônibus levando vinte e quatro pessoas
Tristonhas e solitárias
Quatro horas e um minuto
Acendi um cigarro e a cidade pegou fogo.
Cinco horas
Cinco soldados espancando cinco pivetes
Filhos sem pai
E órfãos de pão
Cinco horas e um minuto
Urinei na ponte e inundei a cidade
Seis horas
O Recife reza
E eu voando pra ver Maria”
Seu primeiro livro publicado de forma independente foi "Quem descobriu o azul anil?" (1985). Outros livros de Miró também tiveram publicação independente ou com a ajuda de amigos, a exemplo de "Ilusão de Ética” (1987), "Para não dizer que não falei de flúor" (2004), DizCriação (Andararte, 2012, aDeus (2015), O penúltimo olhar sobre as coisas (2016) e "Meu filho só escreve besteira" (2017). Algumas dessas obras foram publicadas pelo Mariposa Cartonera, Editora de livros artesanais, com capas confeccionadas com papelão reutilizado, pintadas à mão e costuradas artesanalmente.
Miró observava e sabia descrever os fatos do cotidiano como ele só, tudo o que o cercava virava poesia:
- O caminhar pelas ruas - “Quebra a direita, segue a esquerda e vai em frente”;
- O animal de estimação - “nada agora importa/ a única coisa que há sou eu sentado e o sol lá fora/ Lupi latindo querendo chamar atenção/ agora não, Lupizinho!
- A Casa - “Casa - lugar onde pousamos as asas/ quando a noite por fim desaba”
- O Amor - “Amor - um beijo leva, esfrega, navega/um homem é barco, uma mulher é remo”.
Na Obra “Miró até agora” (Miró, 2016) que é uma seleção de parte de todos os livros do poeta, podemos observar que, em vários momentos, ele analisa a relação do homem com Deus, tanto em relação à fragilidade humana quanto do aspecto social, de forma ora intrigante, ora questionadora e, algumas vezes o senso de humor ou a ironia não passam despercebidos, como nos versos a seguir.
“...Deus não inventou nada
Deus só jogou um monte de gente
Aqui dentro
E fez como Pilatos
Lavou as mãos
Só não sei com que sabão.”
“Hoje abri os braços mais que pude e abracei
O infinito céu, página azul do livro de Deus”
“que Deus te ilumine
e a Celpe não mande a conta”
“A vida é um dádiva,
A vida é uma dúvida
A vida é uma dívida
Cada um pague do seu jeito
Só que Deus não aceita cartão de crédito”
“umas folhas verdes
nasceram entre dois prédios
Deus insiste
pra eu acreditar nele”
“Carnaval:
Deus largado pelas ruas de Recife
não sabe se dança frevo
ou vai atrás do maracatu
será que Deus também tem dúvidas?
nas ruas
igrejas e povo
Deus deixa beijar
usar a roupa que quiser
são quatro dias
que Deus não tá nem aí
aí, na quarta-feira de cinza
Deus de ressaca
perdoa quase todo mundo”
“Mãe, Deus dorme?”
Miró lançou seu primeiro livro infantil, Atchim!, pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). Com ilustrações de Cau Gome a obra foi lançada no dia 3 de novembro de 2019 durante a 5ª Feira Nordestina do Livro (Fenelivro), no Centro de Convenções, em Olinda.
O livro de 44 páginas é um poema sobre as perguntas que as crianças costumam fazer sobre a vida e sobre Deus. “As perguntas parecem banais, mas são filosóficas”, diz Miró, que agradece ao ex-editor da Cepe, Wellington de Melo, pela sensibilidade de ter descoberto esse texto seu. “Ele descobriu esse meu lado infantil. Esse livro sou eu. É a história de um filho que nunca viu o pai; é a biografia da minha vida, da minha existência como negro da periferia”, resume.(CULTURAPE, 2019).
O Título desse livro infantil que trata basicamente da curiosidade das crianças, foi escolhido devido à uma memória da infância do poeta. Segundo CulturaPe (2009), o próprio Miró teria afirmado que “O título do livro é pura memória afetiva: Minha mãe tinha alergia a ácaro e vivia espirrando. Então quando eu perguntava uma coisa, ela espirrava primeiro e respondia depois”, recorda Miró”.
Além de escritor, Miró ficou conhecido por suas apresentações performáticas pois decidiu aprimorar seu potencial cênico após assistir a uma apresentação de Emmanuel Gama de Sousa Almeida, conhecido como Manuca Almeida (compositor, poeta, ator, produtor musical e escritor brasileiro nascido em Aracaju).
Miró, que também lutava contra o alcoolismo, chegou a ser hospitalizado no final de 2020 devido a complicações do COVID-19 mas resistiu ao susto.
Em 2021 lançou o livro "O céu é no sexto andar" em comemoração ao seu 61º (sexagésimo primeiro) aniversário.
Os amigos e familiares estavam organizando uma festa de aniversário para comemorar os seus 62 anos no dia 6 de agosto mas na manhã do dia 31 de julho de 2022, no Hotel Central em Recife, onde morava, vencido pelo câncer, o poeta performático nos deixou.
O poeta estava sendo cuidado em casa, como havia solicitado mas o tumor desenvolveu metástase e espalhou-se por outros órgãos. Em suas redes sociais foi descrito que ele "encantou-se".
Miró não alcançou o retorno financeiro merecido em vida, a exemplo de outros artistas populares, mesmo que tenha sido reconhecida a importância da sua obra para a poesia urbana de Pernambuco e do Brasil. Eram os amigos que vinham fazendo doações para seu tratamento e posteriormente se uniram para pagar o sepultamento.
“fico olhando o mundo
não me sinto bem agora
agora sinto um
desejo
de não estar mais aqui
mas agora que aqui estou
suporto meus
54 quilos
e vários amores que se foram
a vida é um ônibus
vai levando você
o problema é em que parada
nós vamos descer”
Ele deixa uma vasta obra cheia de intensidade, verdade e caos, inspirada por suas vivências e observação solitária de si mesmo, da vida urbana, dos infortúnios da periferia e fatos do cotidiano bem como das crenças e afetos por vezes apresentados com ironia ou com um humor sutil. Existem relatos de que Miró transformava tudo em lirismo. Dizem ainda que quem teve a oportunidade de acompanhar alguma de suas apresentações jamais esquecerá da sua performance.
Seu legado é a perceção singular da vida nas cidades tão bem retratado por ele e o poeta também nos deixa algumas reflexões para a vida cheias de alegria e otimismo:
"Quando se está feliz, até as borboletas te levam até a esquina".
"Apesar dos efeitos colaterais. O amor ainda é o melhor remédio”
“Todos os dias o ônibus de Deus passa”
Recife, 27 de setembro de 2023.
Fontes consultadas
MACAMBIRA, Germana. Homenagem a Miró da Muribeca abre programação da Cepe em Garanhuns; confira programação: Obra do poeta Miró da Muribeca dá início à agenda da Praça da Palavra Luís Jardim, no Festival de Inverno de Garanhuns. Folha de Pernambuco, 2023. Disponível em: <https://www.folhape.com.br/cultura/homenagem-a-miro-da-muribeca-abre-programacao-da-cepe-em-garanhuns/281036/>. Acesso em: 25 set. 2023.
MIRÓ; RAMOS, Sennor (Org.) Miró até agora. 2º ed. Recife: CEPE, 2016.
MIRÓ. O Céu é no 6º andar. Recife: Edições Claranan, 2018.
MIRÓ DA MURIBECA [Foto neste texto]. Disponível em: <https://www.folhape.com.br/cultura/homenagem-a-miro-da-muribeca-abre-programacao-da-cepe-em-garanhuns/281036>. Acesso em: 26 set. 2023.
MIRÓ da Muribeca fez da observação da realidade periférica matéria-prima para sua poesia vital, indispensável, engajada. JC online - UOL, 31 jul. 2022. Disponível em: <https://jc.ne10.uol.com.br/cultura/2022/07/15054681-miro-da-muribeca-fez-da-observacao-da-realidade-periferica-materia-prima-para-sua-poesia-vital-indispensavel-engajada.html>. Acesso em: 25 set. 2023.
MIRÓ da Muribeca lança seu primeiro livro infantil na Fenelivro. Portal Cultura PE, 2019. Disponível em: <https://www.cultura.pe.gov.br/canal/literatura/miro-da-muribeca-lanca-seu-primeiro-livro-infantil-na-fenelivro/>. Acesso em: 27 set. 2023.
POETA Miró da Muribeca lança o primeiro livro infantil na Fenelivro. Revista O Grito, 1 de nov. de 2019. Disponível em: <https://revistaogrito.com/poeta-miro-da-muribeca-lanca-o-primeiro-livro-infantil-na-fenelivro/>. Acesso em: 26 set. 2023.
QUEM foi Miró da Muribeca? Quatro cinco um. Disponível em: <https://webstories.quatrocincoum.com.br/quem-foi-miro-da-muribeca/>. Acesso em: 25 set. 2023.
Como citar este texto
VERARDI, Cláudia Albuquerque. Miró da Muribeca: entre o lirismo e a periferia. In: Pesquisa Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2023. Disponível em: https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/miro-da-muribeca-entre-o-lirismo-e-periferia/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.:6 ago. 2020).