Maria Gomes de Oliveira nasceu no dia 8 de março de 1911, na fazenda Malhada do Caiçara, próximo à localidade Santa Brígida, no Estado da Bahia. Os familiares chamavam-na de Maria Déia. Seus pais, moradores de Jeremoabo, eram os fazendeiros Maria Joaquina da Conceição e José Gomes de Oliveira.
Aos 15 anos, Maria Déia se casava com o sapateiro José Miguel da Silva, apelidado Zé do Neném. O casal permaneceria junto durante cinco anos, mas, como José era estéril, eles não tiveram filhos. As brigas entre os dois eram muito freqüentes e, a cada desavença, Maria costumava se mudar para a fazenda Malhada do Caiçara, que ficava próxima à Cachoeira de Paulo Afonso, de propriedade dos seus pais.
Por aquela fazenda passou Virgulino Ferreira da Silva, o famoso e temido Lampião. Uns dizem que, sem nunca tê-lo visto, Maria Déia já nutria um grande amor platônico pelo cangaceiro. Outros afirmam que a mãe dela segredara, ao próprio Lampião, a existência daquela paixão. E, há quem jure, que foi Luís Pedro - um dos integrantes do bando - quem insistiu para o rei do cangaço conhecê-la.
Independentemente de como tenha sido, realmente, aquela troca de energias, fato é que a atração entre eles foi imediata e recíproca: o cangaceiro caiu de amores por Maria Déia e vice-versa. Impressionado por sua beleza, passou a chamá-la de Maria Bonita. E, ao invés de ficar três dias na fazenda, como era de praxe, permaneceu dez, vivenciando com a esposa de Zé do Neném um tórrido romance.
Ao cabo dos dez dias, sem medir riscos e dificuldades, Maria Bonita colocou suas roupas em dois bornais, despediu-se do marido para sempre, abraçou os familiares, e partiu com Lampião rumo à caatinga. Foi a primeira mulher a se inserir oficialmente no bando, abrindo um precedente até então inabalável. Os demais cangaceiros respeitavam-na muito, referindo-se a ela como Dona Maria, Maria de Lampião ou Maria do Capitão. Era o ano 1931 e Maria Bonita tinha 20 anos.
A partir daí, outras mulheres também entraram para o cangaço. Seria uma verdadeira revolução feminista, uma vez que se emanciparam e impuseram respeito. Muito embora não participassem dos combates, de forma direta, elas eram preciosas colaboradoras, tomando parte das brigadas e/ou empreitadas mais perigosas, cuidando dos feridos, cozinhando, lavando, e, principalmente, dando amor aos companheiros. Fosse representando um porto seguro, ou funcionando como um ponto de apoio importante, para se implorar algum tipo de clemência junto aos cangaceiros, as representantes do sexo feminino contribuíam para acalmar e humanizar os homens, limitando-lhes os excessos de desmandos. Muitas portavam armas de cano curto (do tipo Mauser) e, em caso de defesa pessoal, estavam sempre prontas para atirar. Excetuando-se Lampião e Maria Bonita, os casais mais famosos do cangaço foram: Corisco e Dadá; Gato e Inacinha; Moita Brava e Sebastiana; José Sereno e Cila; Labareda e Maria; José Baiano e Lídia; e Luís Pedro e Neném.
Cabe ressaltar que, apesar de receberem a proteção paternalista dos cangaceiros, a vida das mulheres era bastante difícil. Levar a termo as gestações no desconforto da caatinga, por exemplo, significava sofrimento; e, muitas vezes, logo após o parto, elas eram obrigadas a fazer longas caminhadas, fugindo das volantes. Caso não possuíssem uma resistência física incomum, não conseguiam sobreviver àquele cotidiano inóspito.
Após ter ido viver com Lampião, Maria Bonita engravidou, mas, com pouco tempo, perdeu espontaneamente o feto. E este não seria o único aborto que teve na vida. Em 1932, contudo, ela conseguiu levar a termo a gestação, dando à luz à sombra de um umbuzeiro, no meio da caatinga, em Porto de Folha, no Estado de Sergipe. Lampião foi seu parteiro. A criança? Uma menina que chamaram de Expedita.
A despeito de ser um bandido temido por muitos, Lampião era um homem extremamente jeitoso, dotado de grande capacidade de improvisação: confeccionava suas roupas, fazia os curativos, encanava pernas e braços quebrados, realizava os partos das companheiras dos cangaceiros, entre outros. Superdotado de inteligência, ele era, ao mesmo tempo, guerrilheiro, médico, farmacêutico, dentista, vaqueiro, poeta, estrategista e artesão.
No tocante à Expedita, vale salientar dois pontos importantes: primeiro, o de que não era permitida a presença de crianças no bando. Logo que nasciam, os bebês eram entregues aos parentes não engajados no cangaço, ou deixados com familiares de padres, coronéis, juízes, militares, ou fazendeiros. Segundo: a vida dos cangaceiros era instável, com intensas perseguições, tiroteios e confrontos. Por esses motivos, Lampião e Maria Bonita não podiam criar Expedita. E os fatos, a partir daí, se tornaram, também, uma questão polêmica. Uns disseram que Expedita foi entregue a tio João, irmão de Lampião, que nunca fez parte do cangaço; e, outros, testemunharam que ela foi deixada com o vaqueiro Manuel Severo, na fazenda Jaçoba. Seja lá como tenha sido, Maria Bonita não pôde criar a própria filha: a sua vida já estava intimamente ligada à própria linha do cangaço.
Em uma luta contra a volante pernambucana, na vila de Serrinha, próximo ao município de Garanhuns (PE), a mulher de Lampião era baleada. Como estava perdendo muito sangue, o Capitão Virgulino deu ordem para que a luta fosse encerrada imediatamente, pegou a sua amada nos braços e seguiu rumo ao município de Buíque, onde ela tratou os ferimentos na vila de Guaribas.
No dia 27 de julho de 1938, conforme o costume de anos a fio, o bando acampou na fazenda Angicos, situada no sertão de Sergipe, esconderijo tido por Lampião como o de maior segurança. Era noite, chovia muito e todos dormiam em suas barracas. Na madrugada do dia 28, porém, a volante chegou tão de mansinho que nem os cães pressentiram. Quando alguém deu o alarme, já era tarde demais.
Quando os policiais abriram fogo com metralhadoras portáteis, os cangaceiros não puderam empreender qualquer tentativa viável de defesa. O ataque durou uns vinte minutos, e poucos conseguiram escapar ao cerco e à morte. Lampião fora ferido gravemente e, logo em seguida, o mesmo ocorreu com Maria Bonita.
Ainda assim, ela rastejou até o companheiro (que ainda respirava) e pediu para ele ser poupado. Mas, suas preces foram inúteis. Arrastada pelos cabelos por um dos soldados - José Panta de Godoy – a cangaceira foi degolada viva. Sua cabeça ficou pendurada no pescoço. O próprio Godoy contou, no local da chacina, como procedeu para separar a cabeça de Maria Bonita:
"Depois de cortar a cabeça, que até tive que bater no osso, saiu muito sangue, e eu enfiei o dedo dentro do tutano que tinha e barriei tudo, que era de um branco danado".
Feito isso, o corpo foi colocado em posições grotescas, para risos da volante. Das 34 pessoas presentes no bando, 11 foram mortas em Angico. Bastante eufóricos com a vitória, os soldados ainda saquearam e mutilaram os mortos, roubando-lhes todo o dinheiro, ouro, e jóias. Com Maria Bonita morreu, também, a mulher mais famosa da história do cangaço.
Os soldados colocaram as cabeças cortadas, como troféus de vitória, em latas de querosene contendo aguardente e cal. E, para alimentar os urubus, deixaram os corpos mutilados e ensangüentados a céu aberto. Mesmo em adiantado estado de decomposição, as cabeças percorreram uma parte do Nordeste do Brasil, sendo exibidas à população. Elas atraiam multidões, onde quer que fossem expostas.
No Instituto de Medicina Legal de Maceió, as cabeças foram medidas, pesadas e examinadas, pois havia a hipótese de que, um indivíduo normal, não se tornava bandido. Em outras palavras, era preciso haver características sui generis, um tipo de tara sertaneja, para que alguém se transformasse em cangaceiro.
Depois de muitos estudos, no entanto, contrariando aquela tese, os pesquisadores concluíram que as cabeças não apresentavam qualquer sinal de degenerescência física, tampouco anomalias ou displasias, e classificaram-nas, simplesmente, como dolicocéfalas. Feito isto, os restos mortais seguiram para o sul do País e, de lá, para Salvador, onde permaneceram seis anos na Faculdade de Odontologia da Universidade Federal da Bahia. Lá, os pesquisadores, não conformados com o laudo anterior, tornaram a medir, pesar, estudar as cabeças. Isto representou, apenas, mais uma das tentativas inúteis para se descobrir uma patologia preexistente. Depois dessa romaria, aqueles trunfos de guerra ficaram expostos, por mais de 30 anos, no Museu Nina Rodrigues, em Salvador.
As famílias dos cangaceiros lutaram junto à Justiça, durante muito tempo, visando proporcionar um enterro digno aos seus parentes. Isto só veio a ocorrer, porém, depois do Projeto de Lei nº 2.867, de 24 de maio de 1965, que teve sua origem nos meios universitários de Brasília (em particular, nas conferências do poeta Euclides Formiga), e que foi reforçado pelas pressões da população. Neste sentido, após longos anos de exposições, de estudos e protestos, no dia 6 de fevereiro de 1969, as cabeças de Maria Bonita e Lampião foram sepultadas no cemitério da Quinta dos Lázaros, em Salvador.
Em se tratando da memória do cangaço, do banditismo, da cultura violenta (indiferença e insensibilidade perante o sangue e a morte), entre outros temas, Maria Bonita tem sido pesquisada por acadêmicos, e destacada através da literatura, do cinema, da fotografia, das artes. Os trovadores e poetas populares nordestinos, ao longo dos anos, compuseram muitos versos (inclusive cantados) utilizando o seu nome. Um deles foi o seguinte:
Acorda, acorda Maria Bonita,
Acorda, vem fazer o café,
Que o dia já vem raiando,
E a polícia já está de pé.
Maria Bonita e Lampião possuem familiares em Aracaju (SE). Expedita, a única filha do casal, casou-se com Manuel Messias Neto, dando quatro netos - Djair, Gleuse, Isa e Cristina – à mítica rainha do cangaço.
Recife, 17 de abril de 2006.
Fontes consultadas
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Como citar este texto
Fonte: VAINSENCHER, Semira Adler. Maria Bonita. In: PESQUISA Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2006. Disponível em: https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/maria-bonita/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)