Manguebeat
Última atualização: 29/06/2022
O Manguebeat foi um movimento musical, e cultural por extensão, surgido no início da década de 1990, na cidade do Recife, sendo resultado de uma série de eventos que começaram ainda no final da década de 1970 e início da década de 1980, com o relaxamento da censura no Brasil por parte do Governo Militar. Relaxamento este que possibilitou a entrada de produtos culturais oriundos da Europa e dos Estados Unidos, como a literatura beatnik e as bandas do pós-punk, o que permitiu, segundo Galinsky (1999, p. 53) um tímido renascimento da cultura pop no Brasil.
Segundo Teles (199?), crítico musical da época e amigo pessoal de Chico Science (principal expoente do Movimento), havia um programa na Rádio Universitária chamado Décadas, do qual participavam Renato L., Herr Docktor Mabuse e Fred 04, que sofria influência direta dessas bandas. A importância desse programa reside na existência de um espaço potencial para a execução de músicas não absorvidas pelas rádios comerciais e pela indústria fonográfica. Sobretudo porque Recife se encontrava estagnada, sendo possuidora do título da quarta pior cidade do mundo para se viver. (TELES, 199?).
Alguns outros eventos concorreram para sedimentar o terreno para eclosão do movimento mangue, quais sejam: a proliferação de bandas de heavy metal e hard core, por volta do ano de 1987, que sem lugar para tocar, passaram a fazer seus shows num espaço chamado Arte Viva; Paulo André Pires, que foi produtor e empresário da Chico Science e Nação Zumbi (CSNZ), e atualmente é produtor do Festival Abril pro Rock, havia recém-chegado dos Estados Unidos e aberto uma loja de discos, a Rock Xpress, e começado a promover shows com bandas estrangeiras na cidade. Por meio da Rock Xpress, bandas como a CSNZ, a Mundo Livre S.A., a Loustal e o Lamento Negro pretendiam lançar um CD, intitulado “Caranguejos com Cérebro”, cujo press-release, escrito em 1992 por Fred 04, líder da banda Mundo Livre S. A., foi entregue à imprensa pelo próprio Paulo André, tendo sido publicado como Manifesto Mangue.
Mangue, o conceito.
Estuário. Parte terminal de rio ou lagoa. Porção de rio com água salobra. Em suas margens se encontram os manguezais, comunidades de plantas tropicais ou subtropicais inundadas pelos movimentos das marés. Pela troca de matéria orgânica entre a água doce e a água salgada, os mangues estão entre os ecossistemas mais produtivos do mundo.
Estima-se que duas mil espécies de microorganismos e animais vertebrados e invertebrados estejam associados à vegetação do mangue. Os estuários fornecem áreas de desova e criação para dois terços da produção anual de pescados do mundo inteiro. Pelo menos oitenta espécies comercialmente importantes dependem do alagadiço costeiro.
Não é por acaso que os mangues são considerados um elo básico da cadeia alimentar marinha. Apesar das muriçocas, mosquitos e mutucas, inimigos das donas-de-casa, para os cientistas são tidos como símbolos de fertilidade, diversidade e riqueza.
Manguetown, a cidade
A planície costeira onde a cidade do Recife foi fundada é cortada por seis rios. Após a expulsão dos holandeses, no século XVII, a (ex)cidade *maurícia* passou desordenadamente às custas do aterramento indiscriminado e da destruição de seus manguezais.
Em contrapartida, o desvairio irresistível de uma cínica noção de *progresso*, que elevou a cidade ao posto de *metrópole* do Nordeste, não tardou a revelar sua fragilidade.
Bastaram pequenas mudanças nos ventos da história, para que os primeiros sinais de esclerose econômica se manifestassem, no início dos anos setenta. Nos últimos trinta anos, a síndrome da estagnação, aliada a permanência do mito da *metrópole* só tem levado ao agravamento acelerado do quadro de miséria e caos urbano.
Mangue, a cena
Emergência! Um choque rápido ou o Recife morre de infarto! Não é preciso ser médico para saber que a maneira mais simples de parar o coração de um sujeito é obstruindo as suas veias. O modo mais rápido, também, de infartar e esvaziar a alma de uma cidade como o Recife é matar os seus rios e aterrar os seus estuários. O que fazer para não afundar na depressão crônica que paralisa os cidadãos? Como devolver o ânimo, deslobotomizar e recarregar as baterias da cidade? Simples! Basta injetar um pouco de energia na lama e estimular o que ainda resta de fertilidade nas veias do Recife.
Em meados de 91, começou a ser gerado e articulado em vários pontos da cidade um núcleo de pesquisa e produção de idéias pop. O objetivo era engendrar um *circuito energético*, capaz de conectar as boas vibrações dos mangues com a rede mundial de circulação de conceitos pop. Imagem símbolo: uma antena parabólica enfiada na lama.
Hoje, os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em hip-hop, colapso da modernidade, Caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência.
Bastaram poucos anos para os produtos da fábrica mangue invadirem o Recife e começarem a se espalhar pelos quatro cantos do mundo. A descarga inicial de energia gerou uma cena musical com mais de cem bandas. No rastro dela, surgiram programas de rádio, desfiles de moda, vídeo clipes, filmes e muito mais. Pouco a pouco, as artérias vão sendo desbloqueadas e o sangue volta a circular pelas veias da Manguetown.
A partir de então, o Manguebeat, representando principalmente pelas bandas Chico Science e Nação Zumbi e Mundo Livre S.A., ao mesmo tempo em que atribuiu novos significados a gêneros da world music como o soul, o funk e a música eletrônica, também revitalizou os ritmos folclóricos pernambucanos, como o maracatu, o caboclinho e a ciranda. A partir de então, esses ritmos passaram a ser incorporados no cotidiano das classes médias recifenses, trazendo novas perspectivas às necessidades da cidade do Recife e tirando a cultura popular da marginalização (GALINSKY, 1999).
Outro legado do manguebeat foi a inserção de jovens pertencentes às classes menos privilegiadas na cena musical da cidade. Como aponta Leão (2002), se antes o espaço do lazer eram as salas de concerto, os teatros, as casas de show, a partir do manguebeat, a rua passou a ser ocupada por jovens ávidos por diversão, culminando, por exemplo, com a revitalização do bairro do Recife Antigo, antes reduto de vagabundagem e prostituição.
O manguebeat inseriu Recife e a música pernambucana e brasileira no debate sobre globalização, exatamente por fomentar a fusão de ritmos e o encontro do pop com o folk, permitindo o afloramento de uma discussão em torno das identidades locais, em que a cidade do Recife passa a ser reconhecida como uma metrópole latinoamericana, com todos os seus hibridismos. Inaugurou também uma linguagem musical que deu espaços para hibridismos na música pernambucana, incentivando centenas de jovens a formar a sua própria banda, o que desencadeou o aparecimento de novas bandas, que hoje se situam sob o rótulo de pós-mangue.
Recife, 25 de julho de 2013.
Fontes consultadas
GALINSKY, Philipe Andrew. Maracatu atômico: tradition, modernity and postmodernity in the Mangue Movement and “New Music Scene” of Recife, Pernambuco, Brazil. 1999. 2 v. Thesis (Philosopfy Doctor in Music) – Departament of Music, Wesleyan University, Middletown, 1999.
LEÃO, Carolina Carneiro. A maravilha mutante: batuque, sampler e pop no Recife dos anos 80. 2002. 129 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação) – Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2002.
TELES, José (Org.). Meteoro Chico. Recife: Bagaço, [199?].
Como citar este texto
CAMPOS, Cynthia. Manguebeat. In: PESQUISA Escolar. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 2013. Disponível em:https://pesquisaescolar.fundaj.gov.br/pt-br/artigo/manguebeat/. Acesso em: dia mês ano. (Ex.: 6 ago. 2020.)